domingo, 27 de dezembro de 2015

O valor da amizade

Hoje na Rússia tive o prazer de encontrar-me com um velho camarada com quem me correspondo há 10 anos, mas só conheci ano passado.

Almoçamos juntos, conversamos bastante pelo caminho, de carro, e visitamos um dos pontos mais altos da Nova Arbat, trata-se de um prédio que muda de cor constantemente, ao menos nesse período agora de fim de ano. De lá pude ter uma vista de boa parte da cidade de Moscou, incluindo o Kremlin, a Catedral de Cristo Salvador, o Hotel Ucrânia, dentre outros prédios famosos.






quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Entrevista com entusiasta do Brasil na Rússia


O descobridor da Rússia revela tesouro cultural da Rússia, o Hermitage


O Hermitage é um conjunto de prédios históricos da Rússia, sendo o maior deles o Palácio de Inverno, antiga sede do governo russo dos tempos do Império. Lá estão situados os tronos de Pedro, o Grande, fundador de São Petersburgo, e de Nikolay II, o último tzar da Rússia. O Palácio de Inverno foi tomado pelos bolcheviques e transformado em museu acessível a todos os cidadãos.








domingo, 20 de dezembro de 2015

Em São Petersburgo

Você sabe que está em São Petersburgo e não em Moscou quando:
- Em vez de roupas de marca da Itália você vê lojas de roupas da Finlândia
- Quando em vez de Ferreiro Rocher você vê chocolates finlandeses
- Quando em vez de lojas de calçados italianos você vê lojas de calçados alemães
- Quando além de gorros tipo "esqui" você vê um grande número de russos usando ushanka
- Quando você vê um número expressivo de russas usando cabelo curto, muito curto
- Quando a maioria das russas são loiras, isto é, com cabelos muito claros (em alguns lugares do Brasil qualquer mulher branca é chamada de "loira")
- Quando as placas nas ruas possuem designação em inglês
- Quando no metrô você chega rápido na maioria dos lugares qualquer lugar
- Quando o vagão é chamado de "tram", em vez de poezd
- Quando no metrô você usa uma moedinha em vez de passar cartão recarregável
- Quando há canal pra tudo quanto é lado na cidade
- Quando você encontra mais músicos amadores no metrô

Visita à Catedral de Santo Isaque, na Rússia


Um passeio pela Catedral de Santo Isaque.

A catedral de Santo Isaque (Isaakievskiy Sabor) é um dos principais cartões postais de São Petersburgo, junto com o Ermitaj, o monumento a Pedro, o Grande, e outros.


Ela foi construída com o intuito de ser uma das principais catedrais de São Petersburgo e de toda a Rússia, nos tempos do Império, e tal como praticamente toda a cidade de São Petersburgo, ela não foi construída por arquitetos russos, mas por arquitetos ocidentais, no caso por um francês chamado Monferrant. E isso ajuda em parte a entender por que os ocidentais falam tanto de São Petersburgo, mas raramente de outras cidades russas, pois São Petersburgo foi construída sob o reinado de Pedro, o Grande como uma "janela para o Ocidente", uma forma de copiar Versalhes e os canais de Veneza, prédios da Holanda, e ao mesmo tempo uma resposta do tzar Pedro aos boiardos, que chegaram a matar membros de sua família quando ele era um garoto. Pedro fez de tudo para humilhar a nobreza russa, obrigou-os a vestir-se como ocidentais, a cortar as suas barbas, motivo de orgulho dos boiardos russos, e mudou a capital de Moscou (considerado um lugar de conspiração e confusão) para São Petersburgo. Ele queria realmente humilhá-los, e São Petersburgo foi essa resposta, cidade que ficaria vinculada ao nome da dinastia Romanov, uma ruptura com Moscou, fundada por um representante da dinastia dos Rurikidas, descendentes de Ryurik, o ruivo, um variegue (viking da Rússia).

São Petersburgo é uma forma de dizer, "ei, vocês do ocidente, nós temos uma cidade aqui para mostrar que na Rússia tem gente que acha vocês caras muito legais", e isso explica o entusiasmo de muitos ocidentais com cidades como São Petersburgo, em vez das cidades do Anel Dourado, por exemplo, que tem as cidades mais antigas da Rússia dos tempos em que se fazia igrejas de madeira. Além disso São Petersburgo está cheia de placas bilíngues, com inscrições em russo e na escrita latina, em inglês, o que do ponto de vista do autor dessas linhas não é algo positivo, afinal de contas quando estou no Brasil não vejo nada em russo, embora haja turistas russos, na Alemanha há turistas russos, mas tudo está em alemão, então por que a Rússia deve ter placas em inglês? Sou particularmente contrário a essa ideia e mesmo a vejo como um insulto, mas é a política da cidade incentivar o turismo mais do que em locais como Moscou, então, como se diz no Rio Grande do Norte, deixe estar. Discutindo o caráter ocidental de São Petersburgo, uma amiga russa (evidentemente fã da cidade) deu um bom argumento, "na Rússia há tantas cidades em estilo russo, São Petersburgo apresenta algo diferente". Aqueles que me conhecem sabem que posso não concordar com o que você diz, mas posso pensar a respeito caso você tenha um bom argumento.

Qualquer pessoa que tem um verdadeiro apreço pela cultura russa, que entende o seu significado sabe bem o que isso significa, para aqueles que querem apenas tirar foto com prédios bonitos isso não faz a mínima diferença. Qualquer pessoa que sabe bem o significado da palavra "ocidente", historicamente falando, sabe que "ocidente" significa a tentativa de subjugação da cultura russa, tentativas forçadas de converter o país ao catolicismo, cruzadas, invasões suecas, alemãs, polonesas, cavaleiros teutônicos, Napoleão, Hitler, imperialismo americano.... E isso não apenas para a Rússia, mas também a destruição e subjugação de povos inteiros nas Américas, Ásia e África. Mas ao contrário desses lugares, falar na Rússia é falar na luta pelo direito de ser diferente!

Mas deixando um pouco de lado a política, claro que nisso há algumas vantagens para o ocidental, pois ele terá mais importância no desenvolvimento cultural e econômico do que talvez teria noutras cidades. E depois, não esqueçamos que não é por acaso que São Petersburgo é uma capital cultural, nela moraram grandes nomes como Dostoyevskiy, Tolstoy, Pushkin, Gorky e outros. As estações de metrô dedicadas a eles são muito mais bonitas e expressivas do que a de Moscou. Além disso, sempre que alguém insistir na pergunta do porquê de você ir à Rússia mais de uma vez, depois de São Petersburgo você pode dizer que esteve numa "cidade europeia" e assim parecer mais eclético e "open minded" como os ocidentais adoram se descrever (por mais que muitas vezes não o sejam).

Mas voltemos ao arquiteto. O fato é que independente de sua nacionalidade o francês desenhou uma bela igreja, independente do fato de que ele tentou ao máximo adaptar uma típica arquitetura católica para um contexto ortodoxo. Vemos na foto abaixo um busto de Monferrant (clique para ampliar).



Agora vejamos um pouco do seu trabalho. Esse é o exterior da catedral de São Isaque. Aqueles que leram o nosso artigo sobre a ortodoxia podem questionar algumas imagens na catedral, mas não se trata de "imagens" enquanto objeto de reverência, mas meras ilustrações de valor arquitetônico, mas não sacro:




Porta principal da catedral. Não se entra por essa porta, há uma entrada para o museu, paga-se 350 rublos, cerca de 20 reais, você pode tirar fotos no interior.


Maquete do conjunto arquitetônico




A Catedral de Santo Isaque possui várias pinturas que ilustram diferentes momentos da história do cristianismo. Arriscaria dizer que muitas, senão todas, são trabalhos de pintores ocidentais, lembrando muito as pinturas do Vaticano. Uma amiga que esteve na Itália comentou a fortíssima influência italiana nas catedrais de São Petersburgo. Lembramos ao leitor que fotografar o interior de uma "catedral" ortodoxa é um luxo que nós temos, pois a princípio não se pode tirar fotos em catedrais, especialmente após o escândalo do Pussy Riot. (Clique para ampliar)








Aqui nós percebemos como o artista, ciente do fato de que a Igreja Ortodoxa não contempla imagens esculpidas, tentou dar um efeito 3D a imagens pintadas, isso há centenas de anos. Notemos que nessa representação, como em outras da catedral, a cruz aparece em estilo romano (já explicamos aqui a diferença entre a cruz romana, a grega e a russa). Embora a ortodoxia também use a cruz romana, ela não é comum (o mesmo pode ser dito da cruz ortodoxa russa no catolicismo romano).


Turista russo contempla o iconário da catedral, que traz, dentre Jesus e outros santos, São Dmitri Donskoy, a Mãe de Deus, e outros.

Teto da catedral em maiores detalhes:



O "Descobridor da Rússia", abrindo-a para todos que não tiveram a oportunidade de descobri-la, ou já o fizeram, mas querem relembrar, com um pouco de óleo no rosto, após uma missa no dia de São Nicolau:


Altar com o ícone da Mãe de Deus (Bogoroditsa), representada com o menino Jesus



Detalhe do lustre da catedral



Porta da catedral vista do interior



Uma particularidade da catedral é que ela teve um papel muito importante durante o Cerco de Leningrado, um dos episódios mais difíceis da IIGM na União Soviética, quando a cidade foi inteiramente cercada de tropas nazistas alemãs vindas da Noruega e Finlândia, além de outras direções, passou fome e frio, mas não se rendeu, é que o pátio e o jardim que antecede a catedral foi usado para a instalação de artilharia antiaérea, para defender a cidade dos bombardeios da Luftwaffe. Muitos soldados do Exército Vermelho abrigaram-se na catedral.



Tendo durante muito tempo sido apenas um museu, a Catedral de Santo Isaque voltou a celebrar missas a partir de 2008, num pequeno trecho da catedral. Aqueles que até ela vão apenas como turistas assim o são, porém há aqueles que respeitando a Santa Tradição tiram o chapéu, usam o véu e participam da essência da Catedral, no trecho reservado à celebração da missa, quando podem. É um local de grande riqueza cultural, histórica, arquitetônica e religiosa.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O Museu das Armas de Tula

Apesar de ter menos de 500 mil cidadãos, a cidade de Tula é mais velha que o Brasil. Lembremos que não foi longe de lá que os russos decidiram pela primeira vez num campo de batalha não mais ser escravos da Horda Nogay, a Horda dos tártaros, derrotados pelo Grão-Príncipe Dmitri Donskoy. Isso garantiu à cidade e à região de Tula uma tradição militar que até hoje permanece viva, honrada através de seus monumentos e museus. Lembremos ainda que essa honra foi mantida vida durante os anos difíceis da IIGM, quando a cidade ganhou o título de cidade-herói, pela proeza de seus cidadãos, que pouco armados conseguiram deter uma unidade do Exército Alemão.

O museu medieval mantém a tradição de luta de Tula viva e impressiona a todos que vão até essa cidade e aos que nela habitam.


Abaixo o lendário ferreiro Demidov e o Museu das Armas, em formato de elmo de cavaleiro russo



Abaixo um monumento ao tzar Pedro, o Grande, responsável por reunir em Tula os melhores ferreiros armeiros da Rússia




Abaixo alguns veículos militares instalados no Museu das Armas de Tula por ocasião dos 70 anos da vitória sobre o nazismo. Embora sejam feitos para a guerra, é graças a eles que as crianças na Rússiam podem ir à escola, em vez de viver em porões para se proteger de ataques de artilharia (como ocorre no Leste da Ucrânia) ou podem tomar sorvete com os seus pais, em vez de passar como como ocorre na África devido às incontáveis ingerências do imperialismo europeu naquele continente. Lembremos que ao contrário dos países da Europa Ocidental, a Rússia jamais teve colônias na África.




                                          

                                          


Fotos de um amanhecer em Tula, na Rússia

Muitos brasileiros têm um sonho, de poder deixar os seus filhos irem à escola sozinhos, saber que ele irá voltar com segurança, que nas ruas, mesmo que ele ande com um pouco mais de coisas ele não irá se deparar com um ladrão, de andar pacificamente nas ruas, sabendo que elas são as suas ruas, e não as ruas de ladrões e criminosos da pior espécie.

As fotos a seguir mostram um amanhecer tranquilo na cidade de Tula, em pleno inverno russo. Deveria haver neve, mas a manhã foi ensolarada e prazerosa, todas tiradas do apartamento onde fui hospedado.



segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Igreja Ortodoxa Russa é católica?

Foto: Protodiácono, um padre ortodoxo

Durante a minha viagem à Rússia, muitos ficaram impressionados com a beleza arquitetônica e espiritual das catedrais da Igreja Ortodoxa Russa, assim surgiram muitas questões de leitores do blog sobre a fé ortodoxa russa. Quais as diferenças do cristianismo ocidental para o cristianismo oriental? Por que suas igrejas são diferentes? A igreja ortodoxa é uma igreja apenas russa? Esse artigo se propõe a esclarecer tais diferenças.

O batismo e os símbolos ortodoxos

Primeiramente, devemos nos perguntar, o que é "ortodoxia"? O que torna alguém "ortodoxo"? Se nos atermos à filologia, ortodoxo, do grego ortho (como em ortopédico, ortografia, significando "correto"), e doxos (opinião, método), assim temos "opinião correta". Filologicamente falando, "ortodoxo" é aquele que segue a "opinião correta", e cristão ortodoxo seria o "cristão da opinião correta", verdadeira, "aquele que segue a forma correta do cristianismo". No russo o termo utilizado é pravoslavniy, que tem o mesmo significado, mas em geral são referidos apenas como hristyanin, isto é, "cristão".

O ingresso na Igreja Ortodoxa (adiante IO) se dá pelo sacramento do batismo através da imersão (para os católicos pela unção). Em casos de emergência, onde a imersão coloque em risco a vida do novo cristão ou na falta de uma piscina batismal, o batismo pode ser feito molhando-se a fronte três vezes. Neste sacramento também o cristão recebe um novo nome, que poderá ser igual ou diferente do seu "nome do mundo" (na svete), em geral um nome ligado à história do cristianismo, por exemplo "Olga" (em homenagem a Santa Olga), "Pyotr" (em homenagem a São Pedro), etc. Se for diferente do seu "nome do mundo" será usado durante seu sacerdócio. Por exemplo, São Lucas da Crimeia, santo ortodoxo médico e cientista, se chamava originalmente Voyno-Yasenetskiy.

 Fotos: Batismo de adultos na festa do Batismo de Cristo no Rio Jordão, tradição anual na Rússia. Este batismo, feito na Rússia no dia 19 de janeiro, não é obrigatório para os ortodoxos, sendo mais uma tradição de fé.
 

O batismo é em regra feito por um sacerdote cristão, embora possa ser feito por qualquer cristão ortodoxo, em casos de urgência. Após o sacramento, o cristão ortodoxo entra na nave da igreja, onde estão os ícones sagrados. E aqui temos mais uma diferença da ortodoxia para o catolicismo romano, as imagens de santos nunca são esculpidas, apenas pintadas. Somente uma imagem pode ser esculpida, a de Jesus Cristo na cruz, a fim de demonstrar o seu sofrimento na cruz. E aqui temos mais uma diferença na IO, a sua cruz! A cruz ortodoxa russa é em sempre retratada com 3 barras (a católica com 1 e a ortodoxa grega com os braços do mesmo tamanho), pois acredita-se no cristianismo ortodoxo que Cristo foi crucificado com os pés separados, por isso a barra inferior. No meio os seus braços maiores e na parte de cima a placa com a inscrição "INRI". Por esta razão, as igrejas ortodoxas da Rússia trazem esta representação. Alguns crucifixos ortodoxos podem parecer ter uma barra, como a romana, mas se olharmos de perto veremos as três barras envoltas por uma luz, dando a impressão de ser apenas uma. Em geral crucifixos ortodoxos trazem na parte de traz a inscrição Spasi i Sohrani (СПАСИ И СОХРАНИ, isto é, Guarde e proteja). Lembremos que em russo a palavra para "obrigado" é "spassibá", abreviação de Spássi Boje! (Que Deus guarde!).

O crucifixo é abençoado e consagrado durante o batismo, e colocado no cristão, sendo assim a sua "carteira de identidade" que identifica aquele como sendo um cristão, e não um judeu (simbolizado pela Estrela de Davi) ou um muçulmano (simbolizado pela Lua Crescente). Alguns religiosos, em geral protestantes, recusam a cruz alegando ser o sofrimento de cristo, entretanto os cristão ortodoxos lembram que nos primeiros anos do cristianismo não havia cinema e televisão, sendo a cruz utilizada para ilustrar a história e os ensinamentos cristãos. Ainda em vida, Cristo exortou os seus seguidores a "levar consigo a sua cruz", uma linguagem figurada que é recordada através do símbolo universal cristão.

Ortodoxos são católicos? Católicos são ortodoxos?

Além de sua cruz, o cristão também aprende o Credo (em russo, Simvol Very), na qual ele afirma a sua crença na igreja "una, santa, católica e apostólica". Isso quer dizer que ortodoxos e católicos creem na mesma coisa?

O termo utilizado em russo para "católica" (no credo) é sbornaya, isto é, "congregante", em vez de "katolik", termo geralmente relacionado à Igreja Romana (adiante ICAR). Para nós ortodoxos, "católico" é ser congregante, isto é, ultrapassar a sua própria individualidade em prol do coletivo, algo íntimo, inerente ao caráter da própria Igreja, um modo de conhecimento da verdade da Igreja de Cristo, um acordo perfeito entre a unidade e a diversidade. Segundo o teólogo Vladimir Lossky, "a Igreja reconhece como seus aqueles que estão marcados pelo selo da catolicidade". Assim, o termo "católico" que os católicos romanos empregam como "universal" (como seriam universais também o islã e o budismo, que estão espalhados pelo mundo), os ortodoxos empregam como uma qualidade de detentor da verdade, isto é, daquele que transcende à sua individualidade.

Enfatizemos que diferente dos católicos, que creem que o Espírito Santo "procede do pai e do filho", como se fosse uma pessoa reduzida, entendemos nós ortodoxos que ele precede "do pai através do filho", estando estes em condição de igualdade, formando assim uma harmônica e perfeita trindade, no texto original do Credo:  "Creio no Espírito Santo (...) que procede do Pai, e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória".

O "filioque" é um dogma introduzido por Roma, um dos pontos que deu origem à separação da Igreja, o que evidencia a tese de um cisma do ocidente, e não do oriente, como apontam alguns historiadores, cisma esse que trouxe grandes prejuízos para o mundo cristão, trazendo a falsa noção de que ortodoxia é "assunto do oriente", uma "religião do oriente", "religião russa", "religião grega" ou alguma outra conotação geográfica. Assim, há na ortodoxia duas opiniões sobre a ICAR, uma é a de que se trata de uma igreja cismática (assim como os Crentes Antigos da ortodoxia), e outra a de que se trata de hereges. Enfatizemos que em russo (e no mundo ortodoxo como um todo) a palavra "cisma" (raskol) é carregada de conotação negativa. Em "Crime e Castigo", romance de Dostoyevsky, o personagem principal, um anti-herói ateu, assassino e estudante de direito que no final se converte à ortodoxia tem por sobrenome "Raskolnikov", isto é, "Cismático". No campo laico, na história soviética, o secretário-geral do PCUS Nikita Hruschov foi denunciado por ser "cismático", no caso em relação à doutrina política comunista que regia a Rússia no século XX.

As regras de conduta também são diferentes entre um fiel ortodoxo e um fiel católico, para dar um exemplo disso, o famoso lutador Fyodor Emelyanenko chamava palavrões antes de aceitar Cristo na Ortodoxia, ao fazê-lo, acabou com a prática, e mesmo em momentos de nervosismo é impossível ver o lutador russo fazê-lo. Para um cristão ortodoxo, o uso de palavrões é considerado um ato vergonhoso, e essa moral ortodoxa por sua vez influencia a legislação russa e dos países de maioria ortodoxa, por exemplo, na Rússia o uso de palavrão em público pode resultar em multa administrativa e mesmo em detenção pela Polícia, prática ainda mais acentuada na época da União Soviética, mesmo com o Estado laico, prevista no código penal da Rússia soviética. Para um ortodoxo é considerado vergonho o uso de palavrões e há inclusive livros catecistas que mostram a posição da igreja a respeito desse assunto. Para um católico praticante, como inúmeros vídeos no ciberespaço mostram, o uso de palavrões é muito comum, é verdade, não entre os padres, mas dentre muitos fieis muito próximos de padres e na cultura brasileira, país de maioria católica, muitos usam sem vergonha nenhuma e de forma indiscriminada os palavrões. Em "A verdade sobre o palavrão russo", do bispo Mitrofan (Badanin) de São Petersburgo e Murmansk, o clérigo faz uma analogia decisiva, "se você fosse à casa de alguém e este lhe oferecesse uma vasilha com fezes, mesmo que você rejeitasse, iria se sentir ofendido".

A liturgia ortodoxa

Além do credo, após o batismo, o cristão ortodoxo leva consigo o "Livrinho de Orações" (Molitvoslov). Ele contém as orações que todo cristão ortodoxo faz ao amanhecer e antes de dormir. Essas orações, como todas as da ortodoxia, são cantadas. Essa mesma leitura cantada é feita durante a liturgia divina, a missa ortodoxa, tanto pelo padre quanto pelo coral presente. Na ortodoxia a liturgia mais comum é a de São João Crisóstomo. Em geral é celebrada na língua de cada povo. Em um passado longínquo, ela era feita em grego e ainda hoje os Crentes Antigos realizam a missa em grego. Na Igreja Ortodoxa Russa, a missa se dá em russo e em eslavônico eclesiástico em partes, em razão dos primeiros cristãos russos rezarem em eslavônico antigo, uma língua morta equiparada ao latim, mas usada com mais frequência do que o latim no catolicismo.

Algumas missas da IO são inclusive poliglotas. Há inclusive na internet um vídeo de uma missa feita em russo e em iacútio, por ser celebrada na capital daquele povo da Rússia, a língua é usada pelos iacútios, povo siberiano que adotou o cristianismo, havendo até vídeos de missas em coreano, dada a presença da IOR na Coreia do Norte. Na Romênia, a missa se dá em romeno, nos EUA em inglês, na Geórgia em georgiano, na Armênia em armênio, em Jerusalém, onde a IO guarda o Santo Sepulcro, em hebraico, na igreja antioquina em árabe, etc. Em algumas circunstâncias, há orações feitas por bispos ortodoxos (chamados de metropolitas) em todas essas línguas juntas! É surpreendente poder assisti-las, estando algumas disponíveis em vídeos na página do Youtube da Igreja Ortodoxa Russa, um verdadeiro dom de línguas! Numa delas a leitura do evangelho em liturgia pascoal é feita consecutivamente em pelo menos 20 línguas.

Em nossos dias, o Santo Sepulcro, túmulo de Cristo, situa-se no interior de uma igreja ortodoxa, em Jerusalém.

Alguns aspectos externos

O descobridor da Rússia e uma catedral ortodoxa na Cidade das Estrelas, onde são treinados os cosmonautas russos e morou Yuri Gagarin. O azul da cúpula da catedral é a cor de Santa Maria.

Vivendo em um país de maioria católica, já visitei algumas igrejas católicas em algumas ocasiões. Há alguns fatos em que se diferem bastante da IO, incluindo aí a estética. Em uma Igreja Ortodoxa, geralmente há na entrada um pequeno armário com um véu tipo "lenço" (corrijam-me os estilistas e mulheres leitoras do blog). Isso por que em respeito ao ambiente, as mulheres cobrem a cabeça, e como nem sempre é costumeiro que mulheres usem um lenço, elas podem usar um disponibilizado na entrada da igreja.

As igrejas ortodoxas russas possuem lindos mosaicos e pinturas em seu interior, mas em razão de um escândalo montado por uma banda de rock em desrespeito à principal catedral ortodoxa, na Rússia muitas igrejas têm avisos de proibição para câmeras fotográficas. Mesmo antes disso, devemos lembrar que essas igrejas possuem ícones antigos, alguns com centenas de anos, e tal como em um museu, em regra não se pode tirar foto do interior de igrejas e catedrais ortodoxas. Não verifiquei essa rigorosidade no Brasil, e, na Rússia, se feito de forma discreta ou for previamente conversado com os responsáveis pelos templos maiores, para os quais há excursões, pode-se ter a chance de fotografar a boniteza de seu interior.

Mas não são apenas as mulheres que devem seguir regras de indumentária, mas também os homens. Não se vê em igrejas ortodoxas homens usando bonés, chapéus, gorros... caso alguém o faça, alguém irá provavelmente alertar sobre seu uso. Em geral os fiéis também seguem regras elementares da moral, não se vestindo para a igreja como alguém que se veste para uma discoteca ou bar, conforme vi em algumas denominações religiosas. O templo ortodoxo é um local de adoração, não de entretenimento ou diversão, não é lugar de gritos e nem de danças exóticas, como alguns vídeos nos mostram em diferentes sites. Também não é um teatro, onde se senta para assistir a um espetáculo, por isso geralmente uma igreja ortodoxa não possui bancos no centro da nave. Em geral, bancos ficam situados na entrada, geralmente para pessoas idosas que não podem ficar em pé durante toda a missa por problemas de saúde. Enfatizamos, entretanto, que no Brasil, geralmente por influência da tradição católica, algumas catedrais ortodoxas podem trazer bancos e assentos, algo contestado por religiosos tradicionais. Entretanto, citando um clérigo ortodoxo brasileiro, o mais importante na missa é o coração do fiel, pois de nada adianta ficar em pé se o fiel está ali apenas por conveniência e com maus pensamentos.

Leitura do Evangelho em várias línguas, em missa ortodoxa de Páscoa, na Rússia (reparemos na oração cantada)


Na missa ortodoxa o clérigo costuma ficar de costas para os fiéis, isso por que nós ortodoxos partimos da premissa de que enquanto representante dos fiéis em sua comunicação com Deus, este e os fiéis imaginam Deus à sua sua frente, e tal como um emissário de um grupo de pessoas se volta para aqueles a quem peticionam, e não para esse grupo de pessoas, o sacerdote se volta para Deus, e não para os fiéis por que ele não pede aos fiéis, mas próprio Deus.

Mas a pergunta persiste, por que as Igrejas Ortodoxas Russas têm uma aparência diferente? Conta-nos o imortal da literatura russa e cristão ortodoxo Lyev Tolstoy, que quando Napoleão chegou à Rússia, ele pensou ter chegado à Índia ou à Pérsia por causa do formato das cúpulas das catedrais russas.

Lembremo-nos de um dos episódios vivenciados pelo autor deste blog, quando ele percorria as ruas de Tula, cidade onde foi batizado, quando uma senhora citou um "museu em forma de elmo", referindo-se ao Museu das Armas a mim. Quando procurei o museu, pensei no elmo ocidental, em formato de pão-de-açúcar, ou algo como um elmo dos cavaleiros italianos, que protegia mais de 90% de sua face. E por que estamos falando de elmo, quando o assunto são igrejas? Por que as igrejas ortodoxas em sua maioria apresentam dois formados, o de um elmo (russo ou bizantino, enfatize-se!) ou de uma cebola. Esses formatos não existem por acaso, sendo dotados de toda uma simbologia!

A forma de elmo faz lembrar o guerreiro, a luta espiritual contra as forças do mal e das trevas travada pela Igreja, a forma de bulbo (cebola) faz lembrar uma vela, remetendo às palavras de Cristo de que "vós sois a luz do mundo", simbolizando a Igreja como a "luz do mundo". E se olharmos atentamente, veremos em cada igreja uma "grande vela".

A principal catedral da Igreja Ortodoxa Russa, a Catedral de Jesus Cristo Salvador, combina elementos do "elmo de guerreiro" e de uma "grande vela" da "Luz do Mundo".
A variedade de formas da arquitetura russa dos templos, se expressa no número de cúpulas que os coroam. Este número é simbólico. Uma única cúpula significa a fé em um único Deus; se são três, a fé na Santíssima Trindade; se são cinco o número de cúpulas, Cristo cercado pelos quatro evangelistas; se são sete, os sete mandamentos da Igreja; se nove, as nove ordens angelicais; se são treze, Cristo e os doze Apóstolos. Este número pode chegar até trinta e três, segundo o número de anos da vida terrena do Salvador.*

Catedral ortodoxa antioquina na Síria, em Damasco
Os sacerdotes ortodoxos caracterizam-se pelo seu ascetismo, pela sua falta de vaidade e simplicidade, visível em suas longas barbas, e ao mesmo tempo na graça de suas vestimentas, que simbolizam a luz e a glória do cristianismo, o triunfo da ortodoxia. Seu líder na Rússia é o patriarca Cirilo.

A Igreja Ortodoxa, seja ela russa, grega, síria, romena ou alguma outra autocéfala, é a igreja fundada por Jesus Cristo que preserva a tradição dos apóstolos e toda a essência do cristianismo, não se trata ela de uma igreja nascida de "cismas", "reformas", "casamentos mal resolvidos" ou que tenta parecer "moderninha", é uma igreja marcada por forte ascetismo, devoção, jejum dos fiéis (que envolve o não consumo de carne nas quartas e sextas) e por uma tradição que na Rússia influencia pessoas e sistemas, e sua manifestação, longe de ser uma abstração, é visível desde o primeiro momento em que contamos com a receptividade do russo ou o seu espírito de abnegação na defesa de uma vida, ainda que isso coloque em risco a sua própria.

Catedral ortodoxa de Santa Catarina, em Roma
Regras de conduta

No ocidente, quando se fala em festas como o natal ou mesmo a páscoa, desde criança eu sempre percebi que essas datas tiveram um foco bem mais comercial do que simbólico ou espiritual. Por exemplo, quando falamos em "páscoa" no ocidente, a primeira coisa que vem à cabeça da maioria dos católicos são "ovos" e "coelhinho da páscoa". As lojas ficam cheias de ovos de chocolate caros. Não que eu não goste de chocolate, mas a razão da data acaba sendo perdida. No natal, rádios e TVs anunciam noite e dia a "chegada do Papai Noel". Embora a Rússia tenha o seu próprio Papai Noel, conhecido como "Ded Moroz" (Vovô Frio), ele anuncia a chegada do inverno e do ano novo.

Na ortodoxia russa, quando se aproxima a páscoa, os cristãos ortodoxo saudam-se com um novo cumprimento, "Hristos voskres" (Cristo ressuscitou, no eslavônico eclesiástico), ao que o cumprimentado responde "Vo istinu voskresse" (Verdadeiramente ressuscitou). Não há "coelhinhos da páscoa" ou coisa parecida. Também não há "ovos de chocolate", o mais perto disso são ovos (reais) pintados à mão numa técnica conhecida como "pissanka", neles são feitos desenhos que expressam toda uma simbologia, desejos de um matrimônio feliz, igrejas pintadas, etc

No natal há grandes missas celebradas nas catedrais ortodoxas. O cumprimento usado é "Hristos rodilsya" (Cristo nasceu), ao que o cumprimentado responde "Slavim Yegô" (Glorifiquemos a ele!).

Fontes

Como nos ensina o site da Igreja Ortodoxa Antioquina, o cristianismo ortodoxo está baseado em duas fontes principais, as Sagradas Escrituras, isto é, o Velho e o Novo Testamento, e a Santa Tradição, isto é, a noção de que o cristianismo tem uma história contínua, e não apenas princípios solidificados em um único livro como creem os judeus ou certas igrejas, sua experiência e vida. Essas são as duas principais fontes de fé.

Há outras fontes que fazem parte da Santa Tradição, como as escrituras dos Santos Padres, a Oração e a Vida Litúrgica, a Vida dos Santos, Concílios e Cânones, a Hinologia e as Artes litúrgicas, isto é, os ícones ortodoxos, considerados não apenas uma "obra de arte", mas teologia viva, retratada em linhas e cores. Cada cristão ortodoxo é chamado a ser também um ícone, a ser uma imagem de Deus em nossas próprias vidas.

Maria na ortodoxia


Assim como os católicos, os ortodoxos também demonstram o seu grande respeito por Maria, mulher escolhida para ser a geradora de Jesus, isto é, a "Mãe de Deus", entretanto, ao contrário dos católicos romanos, os ortodoxos têm em Deus, na Santíssima Trindade, o seu principal foco de adoração, de modo que na iconografia ortodoxa Maria jamais é representada sozinha, como acontece no catolicismo, ela é sempre representada com o menino Jesus, o que denota ser o ícone da "Bogoroditsa" (Theotokos). Também os ortodoxos não se referem a Maria com títulos usados pelos católicos como "Rainha do Céu". Ícones de santas isoladas não se tratam de Maria, mas de outras santas ortodoxas (este que vos escreve ganhou de uma amiga o ícone da Santa Matrona, santa cega com o dom de prever o futuro, que previu a vitória russa na II Guerra Mundial). Como os católicos, também não acreditam os ortodoxos na tese protestante de que "Jesus teve irmãos". É verdade que em passagens bíblicas Jesus fala de seus irmãos, como ele fala que Pedro é seu irmão, o que não quer dizer que ambos tenham vindo da mesma mãe.

Uma das mais famosas representações de Maria na ortodoxia é o ícone de Nossa Senhora de Kazan, famoso por ser apresentado nos momentos mais difíceis da Rússia. Conta-se que ele foi apresentado em Stalingrado às tropas do Exército Vermelho, durante a invasão nazista, e recentemente uma missa liderada pelo Patriarca Cirilo apresentou o ícone contra as sanções econômicas contra a Rússia promovidas pelo ocidente, em particular, pelos Estados Unidos, país que curiosamente se apresenta como um "promotor do cristianismo e da democracia", a despeito de suas práticas que muito mais o enquadram naquilo que o aiatolá Khomeini (um muçulmano) chamou de "O Grande Satã".

Sem cruzadas e sem inquisição

Durante a história da ortodoxia inexistiu, ao contrário do trágico ocorrido no ocidente, cruzadas ou inquisição. As cruzadas vitimaram não apenas muçulmanos, como também fez parte delas a tomada de Constantinopla, capital do Império Bizantino, cristão, mediante um grande embuste, onde os cruzados pediam abrigo para sua expedição no Oriente Médio e aproveitando-se da confiança dos bizantinos atacaram e saquearam a cidade, incluindo a principal catedral ortodoxa da época (hoje mesquita em Istambul), a Catedral de Santa Sofia. Também os cruzados católicos roubaram o Santo Sudário, além de ícones e relíquias cujo valor, se convertido para moeda atual, supera um bilhão de reais.

O saque de Constantinopla levou as Cidades-Estados da Rússia medieval a não confiar no ocidente, levando então o Príncipe da República de Novgorod, Alexander Yaroslavich, a recusar a oferta da fé católica na Rússia, oferta essa precedida de uma traiçoeira invasão conhecida como "Cruzada Sueca", em realidade uma raide viking disfarçada de cruzada cristã. Alexander Yaroslavich, cruzando pântanos quase intransponíveis às margens do rio Neva, onde hoje é a grande cidade de São Petersburgo, atacou os cruzados suecos e duelou pessoalmente com o Jarl Birger, derrubando-o de seu cavalo e ferindo-o gravemente. Pela sua vitória, ficou conhecido como "Alexander Nevsky", isto é, "do Nevá". Mais tarde o mesmo príncipe, em aliança com a Horda (o império dos mongóis) liderou a resistência do povo russo contra a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, alemã, derrotados sobre o lago Peipus, no Báltico. Acabava aí o sonho de Roma de forçar a Rússia a aceitar o império do papa.

O divórcio

A ortodoxia aceita o divórcio em circunstâncias especiais, podendo o cristão ortodoxo casar-se três vezes, mas sendo as demais bênçãos nunca iguais às primeiras.

Matrimônio dos padres

Na ortodoxia, um padre do clero secular pode se casar antes de sua ordenação. Os padres do clero monástico não podem se casar.

A ortodoxia no Brasil


O Brasil possui várias missões ortodoxas. Embora muitos ortodoxos brasileiros sejam descendentes de russos ou ucranianos, muitos também não o são. No Rio de Janeiro a ortodoxia russa é representada pela paróquia de Santa Zenaide no Rio de Janeiro, em São Paulo pela Catedral Ortodoxa de São Nicolau. Ela também está representada em Recife, no Nordeste. Junto com a IOR convivem outras igrejas ortodoxas como a grega, a árabe-antioquina e a ucraniana em Curitiba.

A Igreja Ortodoxa está de portas para pessoas de todas as nacionalidades, etnias e também de todas as ideologias, como enfatizou na TV ucraniana o patriarca Cirilo de Moscou.

Catedral ortodoxa em São Paulo
Galeria de ícones


Um ícone ortodoxo pode ser facilmente reconhecido mesmo por um leigo no assunto, pela sua técnica particular de pintura, que geralmente se distingue da forma ocidental romana.


Representação de Jesus Cristo na Ortodoxia
À esquerda, Maria na ortodoxia russa, com o menino Jesus nos braços; à direita, no catolicismo russo, com a coroa de rainha

Original da Santíssima Trindade, o mais famoso ícone ortodoxo russo e uma obra prima da arte russa. Representa a visita de três anjos a Abraão e Sara, anunciando que esta teria um filho. De acordo com estudiosos, representa o Pai, o Filho e o Espírito Santo, pintado pelo famoso monge russo Andriey Rublyev
Ícone de São Dmitriy Donskoy, príncipe russo que desafiou e pela primeira vez derrotou os tártaros da Horda Nogai (sediada em Kazan) nos campos de Kulikovo, próximo de Tula. Seu nome foi evocado como exemplo pelo premier soviético Iósif Stalin, em seu discurso na Praça Vermelha, antes da Batalha de Moscou e retratado pela propaganda comunista como exemplo a ser seguido pelos soldados russos. 
Ícone de São Lucas da Crimeia (no mundo Valentin Feliksovich Voyno-Yasenetsky), santo russo do século XX, médico e cientista que desenvolveu técnicas inovadoras de cirurgia ocular e cuidou de soldados soviéticos durante a II Guerra Mundial, bispo da Crimeia. Primeiro ícone adquirido pelo "Descobridor da Rússia" em sua chegada em Moscou no aeroporto de Sheremetyevo.

*http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/miscelanea/as_cupulas_na_igreja_ortodoxa.html

sábado, 31 de outubro de 2015

Uma bruxa que foi parar numa escola

Em minhas andanças pela Rússia ouvi uma história fascinante e ao mesmo tempo triste. Percorria meu as ruas de uma cidade nos arredores de Moscou, próximo de Monino, uma cidade que antes abrigada apenas militares que participavam de pesquisas e projetos secretos, antes fechada, e agora abriga pessoas de todos os tipos, incluindo, infelizmente, usuários de narcóticos. Ainda hoje os fuzileiros navais russos fazem treinamento lá. O meu amigo Max conduzia seu carro e me falava de uma escola, precisamente, da zeladora de uma escola, alguém já falou alguma vez do zelador de sua escola? 

Essa zeladora tinha uma história bastante particular, Max contava sobre como muitos alunos zombavam dessa zeladora com uma história bastante particular. Durante a Era Soviética ela fora a diretora dessa escola, mas com os anos da Perestroyka e com a queda da União Soviética, quando o novo governo russo procurava "gente nova" com o intuito de "de-sovietizar" as escolas, demitiu a diretora, que sem quaisquer perspectiva de encontrar um novo trabalho acabou tendo que se submeter ao cargo de zeladora. Só que bem mais do que isso, essa zeladora, em um cargo tão simples, era bem mais do que isso, e mesmo em seu passado, ela era muito mais do que uma diretora, mas uma bruxa, não uma sacerdotisa pagã, ela tinha asas, mas não era um anjo, e nem demônio, ela era uma Bruxa da Noite!


Pintura das Bruxas da Noite, ontem e em nosso tempo
As Bruxas da Noite são mulheres cobertas de glória na Rússia e na antiga União Soviética, sendo praticamente desconhecidas no ocidente. Elas se tornaram famosas não por introduzir um frango em suas vaginas ou provocar escândalo numa catedral ortodoxa, como as energúmenas do "Pussy Riot", e essas mulheres também não eram oposicionistas querendo enriquecer às custas de ataques gratuitos ao governo russo, como Anna Politkovskaya, as Bruxas da Noite foram bem mais do que isso, elas formaram o primeiro esquadrão de aviadoras da história, na Força Aérea Soviética, conhecida pela sigla "VVS". 

Integrantes do 46º Regimento de Aviação Bombardeira da Guarda, a sua história começa quando três mulheres heroicamente decide quebrar um recorde mundial da aviação nos anos 30, voando do oeste da União Soviética até o Extremo-Oriente sem efetuar um só pouso. Em nome dessa façanha, sobrevoando a Sibéria elas se livraram de vários mantimentos e uma delas pulou de para-quedas em plena floresta siberiana, com o fim de se livrar da carga do avião. Devemos lembrar aos nossos leitores que saltar de pára-quedas em plena Sibéria equivale a correr o risco de ser devorado por nada mais nada menos que o grande tigre-da-Sibéria, o maior do mundo, um urso polar, ou, na melhor (ou pior) das hipóteses por uma matilha de lobos. Felizmente, uma das garotas do trio conseguiu chegar a uma vila sã e salva. As outras duas que restaram no avião assim completaram o voo, incluindo a terceira no crédito da façanha. A equipe era comandada por Marina Raskova, que vinha de uma família de artistas e sonhava em ser cantora de ópera, tornando-se aviadora "por acidente". Pelo seu notável feito as três receberam o maior título do país, "Herói da União Soviética".

Selo postal de Marina Raskova

Na condição de Herói da União Soviética, Marina Raskova usou-se de sua fama e título para escrever uma carta na qual ela sugeria, ainda antes da guerra, a formação de uma unidade na Força Aérea composta de mulheres, essa carta era endereçada a ninguém mais ninguém menos do que ao primeiro-ministro soviético e secretário-geral do Partido Comunista Bolchevique da União Soviética, isto é, Iósif Vissaryonovitch Stalin, que prontamente respondeu positivamente. Assim era formada o 46º Regimento de Aviação Bombardeira, começando em 1941. Nele as mulheres eram não apenas pilotos, como também engenheiras, chefes do Estado-Maior, mecânicas, dentre outras funções.

Havia um regimento de caça, o 586º Regimento de Aviação de Caça, o 46º Regimento de Aviação de Bombardeio Noturno de Taman e o 125º Regimento de Aviação de Bombardeio. Para termos uma noção do grande passo na história da humanidade que foi a criação de tais unidades, na FAB, a Força Aérea Brasileira, somente no ano 2001, sob o governo do presidente Fernando Henrique, mulheres foram admitidas como pilotos da Força Aérea, isto é, quase 70 anos depois do feito de Stalin, sugerido por Marina Raskova.

As aviadoras, nos anos da IIGM, voavam em pequenos aviões de madeira e lona, o Po-2, tornando-se difíceis de serem avistados e mesmo abatidos pelos pilotos alemães de velozes caças Messerschmidt, que diziam que pela baixa velocidade do Po-2, era como abater um pombo no ar. Esses aviões efetuavam bombardeios contra tropas e bases alemãs, especialmente à noite, facilitando a ação de unidades diversionárias do Exército Vermelho. Assim, por causarem terror e pânicos dentre as tropas alemães, e por voarem em aviões de madeira, os nazistas as apelidaram de Nacht Hexen, isto é, "Bruxas da Noite". Elas se tornaram uma lenda da IIGM, tendo efetuado centenas de voos, principalmente em bombardeiros Po-2, embora algumas em aviões de bombardeio mais sofisticados. 


                       Natalya Myeklin e Lidya Litvyak, duas das melhores pilotos de caça da Força Aérea Soviética

Algumas mulheres estiveram em regimentos masculinos, como a célebre segundo-tenente Lidya "Lilya" Litvyak, popularmente conhecida como "A Rosa Branca de Stalingrado", maior ás feminina da II Guerra Mundial. Conta-se que certa vez, um piloto alemão abatido e preso, surpreendido pelas manobras realizadas pelo piloto na batalha aérea, pediu para ver o piloto que o abateu. Quando apresentaram-lhe uma mocinha com pouco mais de 18 anos, muito bela, de cachos loiros e olhos claros, ele imediatamente riu-se, acreditando se tratar do que hoje se conhece por "trollagem", mas quando essa seriamente contou-lhe cada manobra que fez nos mínimos detalhes, esse foi surpreendido pelo fato de que na União Soviética mulheres estavam pilotando aviões. A jovem tinha por costume pintar lírios em seu avião, razão pela qual tinha o apelido de "Lilya". Infelizmente, como a maioria dos pilotos (cuja média de vida não excedia algumas horas), mesmo tendo sobrevivido a várias batalhas aéreas, Lilya não sobreviveu até o final da guerra, sendo postumamente condecorada com o título e a medalha de Herói da União Soviética. Também Marina infelizmente não sobreviveu ao final da guerra, num voo com baixa visibilidade, seu avião colidiu em uma montanha, assim entrando para a história. 

Ao final da guerra, as Bruxas da Noite tiveram diferentes destinos, algumas retornaram para a vida civil, tornando-se engenheiras, outras continuaram na aviação militar, outras foram para a aviação civil, na Aeroflot, outras foram exercer algum tipo de função burocrática como a de administradoras de um Kol'hoz ou de escolas, quando o país precisava mais do que nunca de administradores eficazes, dada a perda de muitos.
Um Po-2, um dos aviões pilotados pelas Bruxas da Noite

Hoje na Rússia há muitos monumentos dedicados às Bruxas da Noite, mas infelizmente, muitos veteranos ainda não recebem a pensão necessária que lhes é devida, como ocorre em países como a Alemanha, EUA ou Canadá, e alguns milhares dos que restaram mesmo não tem uma casa própria. Mas elas não foram e jamais serão completamente esquecidas, não há filmes sobre elas no cinema ocidental, afinal, a Rússia e principalmente a URSS deve ser exclusivamente retratada de forma negativa, mas elas foram lembradas na URSS em um filme dirigido por uma Bruxa da Noite que se tornou cineasta, num que até agora não possui sequer legendas em inglês, mas admirado por pessoas de diferentes nacionalidades, inclusive americanos, V nebo Nochnye Vedmy (Para o céu, Bruxas da Noite), feita pela juventude comunista nos anos 80. Recentemente, alguns seriados russos como Nochnye Lastochki (Andorinhas Noturnas) retratam as Bruxas da Noite, embora sejam muito criticados por fantasiarem demais (por exemplo, trazendo comandantes homens e o novo clichê dos seriados russos, o diabólico oficial político e os "malvadões" do NKVD). Em Nebo v ognye (Céu em chamas, não confundir com um seriado transformado em filme de mesmo nome, também russo) também há pilotos mulheres. No famoso videogame russo mundialmente conhecido War Thunder, foi lançado um evento na época do Haloween chamado "Caça às Bruxas", em homenagem às Bruxas da Noite, onde o jogador participa de uma corrida de aviões em um Po-2.

Essas grandes mulheres são e provavelmente por muito tempo permanecerão desconhecidas no ocidente, pelo mundo não-russófono, quem ouviu ou ouviria falar de uma mulher com a determinação de Marina Raskova, com a coragem leonina da tenente Lidya Litvyak ou de Natalya Myeklin? Mas procuremos notícias sobre escandalosas "Pussy Riot", ou sobre um certo Trotsky, considerado persona non grata na Rússia, sobre esses encontraremos material de sobra, afinal, seu grande feito foi falar o pior possível sobre a Rússia.