sábado, 31 de outubro de 2015

Uma bruxa que foi parar numa escola

Em minhas andanças pela Rússia ouvi uma história fascinante e ao mesmo tempo triste. Percorria meu as ruas de uma cidade nos arredores de Moscou, próximo de Monino, uma cidade que antes abrigada apenas militares que participavam de pesquisas e projetos secretos, antes fechada, e agora abriga pessoas de todos os tipos, incluindo, infelizmente, usuários de narcóticos. Ainda hoje os fuzileiros navais russos fazem treinamento lá. O meu amigo Max conduzia seu carro e me falava de uma escola, precisamente, da zeladora de uma escola, alguém já falou alguma vez do zelador de sua escola? 

Essa zeladora tinha uma história bastante particular, Max contava sobre como muitos alunos zombavam dessa zeladora com uma história bastante particular. Durante a Era Soviética ela fora a diretora dessa escola, mas com os anos da Perestroyka e com a queda da União Soviética, quando o novo governo russo procurava "gente nova" com o intuito de "de-sovietizar" as escolas, demitiu a diretora, que sem quaisquer perspectiva de encontrar um novo trabalho acabou tendo que se submeter ao cargo de zeladora. Só que bem mais do que isso, essa zeladora, em um cargo tão simples, era bem mais do que isso, e mesmo em seu passado, ela era muito mais do que uma diretora, mas uma bruxa, não uma sacerdotisa pagã, ela tinha asas, mas não era um anjo, e nem demônio, ela era uma Bruxa da Noite!


Pintura das Bruxas da Noite, ontem e em nosso tempo
As Bruxas da Noite são mulheres cobertas de glória na Rússia e na antiga União Soviética, sendo praticamente desconhecidas no ocidente. Elas se tornaram famosas não por introduzir um frango em suas vaginas ou provocar escândalo numa catedral ortodoxa, como as energúmenas do "Pussy Riot", e essas mulheres também não eram oposicionistas querendo enriquecer às custas de ataques gratuitos ao governo russo, como Anna Politkovskaya, as Bruxas da Noite foram bem mais do que isso, elas formaram o primeiro esquadrão de aviadoras da história, na Força Aérea Soviética, conhecida pela sigla "VVS". 

Integrantes do 46º Regimento de Aviação Bombardeira da Guarda, a sua história começa quando três mulheres heroicamente decide quebrar um recorde mundial da aviação nos anos 30, voando do oeste da União Soviética até o Extremo-Oriente sem efetuar um só pouso. Em nome dessa façanha, sobrevoando a Sibéria elas se livraram de vários mantimentos e uma delas pulou de para-quedas em plena floresta siberiana, com o fim de se livrar da carga do avião. Devemos lembrar aos nossos leitores que saltar de pára-quedas em plena Sibéria equivale a correr o risco de ser devorado por nada mais nada menos que o grande tigre-da-Sibéria, o maior do mundo, um urso polar, ou, na melhor (ou pior) das hipóteses por uma matilha de lobos. Felizmente, uma das garotas do trio conseguiu chegar a uma vila sã e salva. As outras duas que restaram no avião assim completaram o voo, incluindo a terceira no crédito da façanha. A equipe era comandada por Marina Raskova, que vinha de uma família de artistas e sonhava em ser cantora de ópera, tornando-se aviadora "por acidente". Pelo seu notável feito as três receberam o maior título do país, "Herói da União Soviética".

Selo postal de Marina Raskova

Na condição de Herói da União Soviética, Marina Raskova usou-se de sua fama e título para escrever uma carta na qual ela sugeria, ainda antes da guerra, a formação de uma unidade na Força Aérea composta de mulheres, essa carta era endereçada a ninguém mais ninguém menos do que ao primeiro-ministro soviético e secretário-geral do Partido Comunista Bolchevique da União Soviética, isto é, Iósif Vissaryonovitch Stalin, que prontamente respondeu positivamente. Assim era formada o 46º Regimento de Aviação Bombardeira, começando em 1941. Nele as mulheres eram não apenas pilotos, como também engenheiras, chefes do Estado-Maior, mecânicas, dentre outras funções.

Havia um regimento de caça, o 586º Regimento de Aviação de Caça, o 46º Regimento de Aviação de Bombardeio Noturno de Taman e o 125º Regimento de Aviação de Bombardeio. Para termos uma noção do grande passo na história da humanidade que foi a criação de tais unidades, na FAB, a Força Aérea Brasileira, somente no ano 2001, sob o governo do presidente Fernando Henrique, mulheres foram admitidas como pilotos da Força Aérea, isto é, quase 70 anos depois do feito de Stalin, sugerido por Marina Raskova.

As aviadoras, nos anos da IIGM, voavam em pequenos aviões de madeira e lona, o Po-2, tornando-se difíceis de serem avistados e mesmo abatidos pelos pilotos alemães de velozes caças Messerschmidt, que diziam que pela baixa velocidade do Po-2, era como abater um pombo no ar. Esses aviões efetuavam bombardeios contra tropas e bases alemãs, especialmente à noite, facilitando a ação de unidades diversionárias do Exército Vermelho. Assim, por causarem terror e pânicos dentre as tropas alemães, e por voarem em aviões de madeira, os nazistas as apelidaram de Nacht Hexen, isto é, "Bruxas da Noite". Elas se tornaram uma lenda da IIGM, tendo efetuado centenas de voos, principalmente em bombardeiros Po-2, embora algumas em aviões de bombardeio mais sofisticados. 


                       Natalya Myeklin e Lidya Litvyak, duas das melhores pilotos de caça da Força Aérea Soviética

Algumas mulheres estiveram em regimentos masculinos, como a célebre segundo-tenente Lidya "Lilya" Litvyak, popularmente conhecida como "A Rosa Branca de Stalingrado", maior ás feminina da II Guerra Mundial. Conta-se que certa vez, um piloto alemão abatido e preso, surpreendido pelas manobras realizadas pelo piloto na batalha aérea, pediu para ver o piloto que o abateu. Quando apresentaram-lhe uma mocinha com pouco mais de 18 anos, muito bela, de cachos loiros e olhos claros, ele imediatamente riu-se, acreditando se tratar do que hoje se conhece por "trollagem", mas quando essa seriamente contou-lhe cada manobra que fez nos mínimos detalhes, esse foi surpreendido pelo fato de que na União Soviética mulheres estavam pilotando aviões. A jovem tinha por costume pintar lírios em seu avião, razão pela qual tinha o apelido de "Lilya". Infelizmente, como a maioria dos pilotos (cuja média de vida não excedia algumas horas), mesmo tendo sobrevivido a várias batalhas aéreas, Lilya não sobreviveu até o final da guerra, sendo postumamente condecorada com o título e a medalha de Herói da União Soviética. Também Marina infelizmente não sobreviveu ao final da guerra, num voo com baixa visibilidade, seu avião colidiu em uma montanha, assim entrando para a história. 

Ao final da guerra, as Bruxas da Noite tiveram diferentes destinos, algumas retornaram para a vida civil, tornando-se engenheiras, outras continuaram na aviação militar, outras foram para a aviação civil, na Aeroflot, outras foram exercer algum tipo de função burocrática como a de administradoras de um Kol'hoz ou de escolas, quando o país precisava mais do que nunca de administradores eficazes, dada a perda de muitos.
Um Po-2, um dos aviões pilotados pelas Bruxas da Noite

Hoje na Rússia há muitos monumentos dedicados às Bruxas da Noite, mas infelizmente, muitos veteranos ainda não recebem a pensão necessária que lhes é devida, como ocorre em países como a Alemanha, EUA ou Canadá, e alguns milhares dos que restaram mesmo não tem uma casa própria. Mas elas não foram e jamais serão completamente esquecidas, não há filmes sobre elas no cinema ocidental, afinal, a Rússia e principalmente a URSS deve ser exclusivamente retratada de forma negativa, mas elas foram lembradas na URSS em um filme dirigido por uma Bruxa da Noite que se tornou cineasta, num que até agora não possui sequer legendas em inglês, mas admirado por pessoas de diferentes nacionalidades, inclusive americanos, V nebo Nochnye Vedmy (Para o céu, Bruxas da Noite), feita pela juventude comunista nos anos 80. Recentemente, alguns seriados russos como Nochnye Lastochki (Andorinhas Noturnas) retratam as Bruxas da Noite, embora sejam muito criticados por fantasiarem demais (por exemplo, trazendo comandantes homens e o novo clichê dos seriados russos, o diabólico oficial político e os "malvadões" do NKVD). Em Nebo v ognye (Céu em chamas, não confundir com um seriado transformado em filme de mesmo nome, também russo) também há pilotos mulheres. No famoso videogame russo mundialmente conhecido War Thunder, foi lançado um evento na época do Haloween chamado "Caça às Bruxas", em homenagem às Bruxas da Noite, onde o jogador participa de uma corrida de aviões em um Po-2.

Essas grandes mulheres são e provavelmente por muito tempo permanecerão desconhecidas no ocidente, pelo mundo não-russófono, quem ouviu ou ouviria falar de uma mulher com a determinação de Marina Raskova, com a coragem leonina da tenente Lidya Litvyak ou de Natalya Myeklin? Mas procuremos notícias sobre escandalosas "Pussy Riot", ou sobre um certo Trotsky, considerado persona non grata na Rússia, sobre esses encontraremos material de sobra, afinal, seu grande feito foi falar o pior possível sobre a Rússia.