terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A principal palavra da língua russa

Aqueles que desejam visitar a Rússia e conhecê-la em sua plenitude terão uma grande experiência se aprenderem a língua russa, que possibilitará ver a Rússia muito além do que sua vista propicia, mas também o interior de cada russo. E para tal, é importante saber qual a principal palavra desse idioma, que faz parte do russo típico.


A célebre atriz Tamara Nosova (à esquerda), no filme "A queda de Berlim", numa cena em que entra em prantos e diz "eta nashi!"

Tendo já assistido a dezenas de filmes soviéticos e russos, reparei em uma coisa que nem sempre outros observam. Em comparação com filmes americanos, brasileiros ou alemães (os filmes que mais costumo assistir), é constantemente usada a palavra "my", isto é, "nós", e por conseguinte seus derivados (nosso, nossa, nossos...). Como assim?

Alguém já imaginou, por exemplo, um narrador de uma rede de TV anunciando um filme onde ele fala de "nossa gente" ou "nossa terra" no Brasil? De fato, já houve uma novela chamada Terra Nostra, que falava de... italianos. Em geral, no Brasil não se diz "nossa terra", "nosso país", "nossa casa", se diz "no Brasil", "na terra tupiniquim", quase sempre em terceira pessoa. Na Rússia isso é bem diferente.

Para os russos, a Rússia não é apenas um mero território, mas uma CASA EM COMUM. Um amigo falou-me de sua casa particular, confinada entre paredes, todavia quando ele põe os pés fora de casa, dizia, ele encontra-se numa casa muito maior, mais ampla, uma grande casa, a Rússia.

Assim, um russo típico jamais diz "este país", "neste país", mas sim "nosso país". Também é comum ouvir a expressão nashe lyudi, nash narod, isto é, "o nosso povo". Os russos não se consideram uma grande massa de vários indivíduos que vieram de um lugar longínquo para habitar um território, mas como uma grande família que lá convive há centenas de anos.

Diferente de muitos ocidentais, que constituem indivíduos atomizados compilados em um lugar, aliens uns aos outros, estrangeiros e estranhos de diferentes lugares, os russos se sentem como se fossem uma grande família. Para efeito de comparação, enfatizo que já presenciei pais dizendo aos seus filhos que iam para outras cidades ou estados brasileiros se referirem a esses locais como "terra dos outros" (eu mesmo já ouvi isso da minha mãe). No tempo em que morei no Piauí, vi um outdoor propagandeando a doação de sangue da seguinte maneira: "demonstre o poder do sangue piauiense", como se fosse um povo diferente do povo brasileiro. Vi diversas manifestações de bairrismo naquele estado, como se constituísse um país em separado e isso nós percebemos também em outros estados. É comum encontrar em estados como São Paulo pessoas que acham que somente elas pagam impostos, como se o nordestino, o sulista ou o nortista gozassem de isenção fiscal, gabam-se de pagar impostos como se isso os fizessem excepcionais e heróis, em vez de estar cumprindo com uma mera obrigação legal prevista em lei, independente de qualquer fator. Atacam brasileiros que recebem o Bolsa Família mas se calam diante dos sonegadores. Observamos pessoas falarem do Nordeste como uma entidade a parte, pessoas falarem do Sudeste como uma entidade a parte, e ainda pessoas que falam do Sul como se ele estivesse livre das mazelas do resto do país. Esse tipo de mentalidade é estranho à Rússia.

Essa mesma atomização da sociedade no Brasil também acontece em outros países do ocidente. Olhemos para a Europa Ocidental, um território pequeno, mas vários Estados nacionais. Ao longo dos séculos houve mais de 100 anos de guerra entre ingleses e franceses. Duas guerras mundiais foram iniciadas na Europa Ocidental, que resultaram em grandes carnificinas. A Europa foi durante anos um palco de guerras constantes entre burgos, ducados, reinos, impérios... A França se dividiu durante a IIGM entre "colaboracionalistas x resistentes", os germanos se dividem entre Alemanha, Holanda e Áustria, a América Latina (especialmente a hispânica) conhece constantes brigas internas. Argentinos e chilenos se odeiam, uruguais rivalizam com argentinos, equatorianos com colombianos, etc. Mesmo vindo de uma mesmo etnos. Durante todo esse tempo a Rússia esteve unida sob confederações de principados, sob um império, sob a URSS e hoje sob uma federação. Assim vemos a desunião no ocidente e a unidade na Rússia, a composição atomística da sociedade no ocidente, e a composição holística de uma grande família na Rússia.

Em diversas línguas aprendemos diversos nomes para esse ou aquele parente. Na língua russa a palavra para "primo" é a mesma palavra para "irmão" (двоюродный брат e брат). Na Rússia é comum um garoto chamar a um homem desconhecido de tio e uma mulher desconhecida de tia. Um jovem pode referir-se a um homem mais velho como batka (paizão), ou uma mulher idosa pode ser referida como babushka (vovó).

Esse sentimento de família também se extende aos governantes. Independente do nome formal do chefe de Estado, esse pode ser visto como um "pai em comum de todos", um pai que se gere bem o Estado permanece, mas se é mal gestor "some do trono". Isso explica por que um príncipe, tzar, premier ou presidente pode ser em alguns momentos chamado de "pai". Na Ucrânia, considerada parte da Rússia histórica (Rus), referia-se ao líder revolucionário anarquista Nyestor Mahno como "batka" (paizão). Isso explica por que na Rússia é comum, por exemplo, encontrar camisas com o retrato ou arte relacionada com o presidente Putin, que conta com grande popularidade (fato que constatei pessoalmente) em razão de sua intrepidez ante as ameaças e sanções do ocidente, isso por que o russo, que conviveu por mais de uma década sob líderes como Gorbatchov e Yeltsin, viu em Putin um líder que disse que "não há vergonha em ser russo nem em ter tido um passado soviético", o que enfureceu os Estados ocidentais, pois não se domina facilmente um povo que tem orgulho de suas raízes.

Para que o leitor entenda bem essa mentalidade, evoco um flashback de uma aula de história. Durante as aulas de história do Brasil, embora o professor fosse um mestre em história e conhecido por boas aulas, era comum que a quase totalidade da turma ignorasse o conteúdo da aula, que em razão disso por vezes se resumia a uma conversa entre mim, outro aluno e o professor. Durante essa aula ele falava sobre a Guerra dos Bárbaros, profundamente ligada com a história da cidade de Mossoró. Mesmo sendo cearense de Fortaleza, demonstrei grande interesse no assunto. Um amigo russo de Tula contou-me sobre um ocorrido em sua escola. Quando uma professora (evidentemente estrangeira) perguntou a ele "quem venceu a Batalha de Kulikovo em 1380?" (ao leitor: uma batalha decisiva entre os russos e os tártaros, quando os russos se levantaram contra o domínio da Horda, abandonando sua condição de vassalos), um garoto levantou o braço, contava meu amigo, e respondeu: "fomos nós!". Os demais alunos concordaram.

A professora, atônita, exclamou: O quê?! "Quem é "NÓS"?". "Vocês não devem dizer que "fomos nós", já que quem venceu foram russos medievais e não vocês crianças". Embora o meu amigo mencionasse que se tratava de uma boa professora, com títulos acadêmicos, ela falhou em identificar ali a mentalidade e os sentimentos de crianças russas.

Sendo estrangeira, ela não compreendeu que os guerreiros russos que no século XIV derrotaram os tártaros fazem parte do mesmo organismo que os russos que hoje vivem na Rússia. Assim, para os russos as vitórias de 800 anos atrás, de 65 ou do presente no Leste da Ucrânia, são vitórias "nossas". Devo lembrar ao leitor que estamos falando de um povo onde é fácil encontrar pessoas que tem pelo menos um avô que de algum modo lutaram na maior guerra da história, a Segunda Guerra Mundial, que na Rússia é chamada de "Grande Guerra Patriótica". 

Na Rússia "my" está em quase todos os lugares, há uma cantora cujo nome artístico é "Nasha Dasha", um partido "Nash dom - Rossiya" (Nossa casa é a Rússia), uma organização chamada "Nashi", Stalin dizia "nashe delo pravoe" (nossa causa é justa), em algumas cartilhas infantis sobre o alfabeto cirílico, o único pronome mostrado é "my", ao ser apresentada a letra "m". Para finalizar a comparação, o longo hino nacional brasileiro fala em "nosso peito", "nossos bosques", "nossa vida", mas nunca "nosso país", "nossa terra". No hino russo logo em seu início temos "nossa potência sagrada", "nosso país", "Glória à nossa pátria livre", "Nós nos orgulhamos de ti".

Por isso, não se esqueça: para os russos my não é só uma tradução seca e formal de um pronome, mas antes de tudo o retrato e a expressão de uma etnos.

Monumento aos defensores da Rússia, mostrando o vityaz, o soldado anti-napoleônico e o militar do Exército Vermelho, no Parque da Vitória, em Moscou. "Os nossos" para os russos.

3 comentários:

  1. Interessante! O czar russo costumava dizer em seus decretos: "Nós, Fulano de Tal, czar da Rússia...". Ao mesmo tempo os reis ocidentais diziam de si mesmo sempre em terceira pessoa. Toda a propaganda dentro da Rússia durante os últimos 25 anos foi dirigida para a destruição desta idéia da "sociedade-família". Lembrem a novela distópica "Nós"? Na realidade uma boa parte da Rússia desde a época do Czarato de Moscou do século XVI falam da Rússia em terceira pessoa, nos anos 90 e 2000 isso era "mainstream" de "nossos" intelectuais. contudo eu acho que a "atomização" ("anomia") da atual sociedade russa é terrivel, todas as casas tem 2 portas metálicas sem falar da terciera porta metálica para a entrada ao predio. Ao nivel horizontal o egoismo dos russos é quase infantil.

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  2. O étnico não faz sentido nenhum para os russos. Cuidado com as palavras. Você quería dizer "uma nação" em vez de "uma etnos", certo?

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