domingo, 24 de janeiro de 2016

Até São Petersburgo, uma avaliação crítica da cidade

Se você é o típico turista interessado unicamente em conhecer novos lugares e postar fotos no Instagram com um belo monumento, sugerimos que você estará apenas perdendo tempo ao ler este artigo e indicamos outros do Descobridor da Rússia, mas se você se interessa pelo que eu chamaria de "turismo crítico", com o intuito de conhecer a história do local, o significado de uma simples pedra no meio de seu caminho, esse artigo revelará algumas impressões sobre a capital do norte.

No quesito beleza São Petersburgo fica num patamar indiscutível, fotos minhas em São Petersburgo tiveram um índice altíssimo de curtidas no Instagram e no Facebook e minha mãe mesmo chegou a dizer que "achou São Petersburgo mais bonita". A minha chefe de trabalho muitas vezes perguntou se eu fui a São Petersburgo, pois "dizem que a cidade é muito bonita" e operadores de turismo, precisamente, de transatlânticos, promovem viagens passando pela cidade às margens do Báltico, no Golfo da Finlândia. O que poderia haver de errado com uma cidade assim?

Como escrevi em artigos anteriores, em minha primeira viagem à Rússia decidi não ir à São Petersburgo, o roteiro que fiz previa a visita a cidades antigas e algumas cidades da Horda, incluindo aí Kazan (capital da Horda Nogay) e Volgogrado (antiga Stalingrado e capital da Horda de Ouro), entendendo ser uma viagem "mais russa". Deixei São Petersburgo para uma segunda viagem por julgar que a capital era uma "cópia de cidades europeias", usando o termo clichê, uma "janela para o ocidente".

Se remetermos ao filósofo italiano Nicolau Maquiavel, "na história há poucos originais, os homens tendem a copiar aquilo que faz sucesso", assim, em qualquer grande cidade do mundo encontraremos cópias. Em Fortaleza, alguém do interior pode se impressionar com a catedral metropolitana sem saber que ela é uma cópia da Catedral de Notre Dame, francesa, no Sul alguém pode ficar maravilhado com gramado e canela, sem tomar em conta que muitos de seus museus e a cidade em si é uma cópia de vilas germânicas e museus europeus e americanos, lá o turista paga um valor considerável pelo que nos EUA ou mesmo numa cidade do interior da Rússia como tula o turista vê de graça em um bar temático. Em Moscou encontramos um estilo inspirado na Rússia antiga, mas também encontramos elementos bizantinos, barrocos e até babilônicos, pois a arquitetura soviética, especialmente a chamada "arquitetura stalinista" tem por base a arquitetura babilônica. Basta comparar, por exemplo, o Mausoléu de Lenin, no exterior do Kremlin, com a as catedrais e prédios no interior do Kremlin de Moscou. O próprio Kremlin de Moscou em si, originalmente branco, hoje é vermelho, e isso não é um trabalho de "comunistas malvados iconoclastas", o vermelho foi adotado ainda sob o tzarismo, no século XIX. É necessário entender essas premissas para fazer uma crítica bem elaborada à cidade de São Petersburgo.

Muitos russos criticam a arquitetura de São Petersburgo, em especial aqueles que estiveram na Itália como minha amiga Yelyena, que comentou que as catedrais de Santo Isaque e a de Nossa Senhora de Kazan parecem versões da Basílica de São Pedro desmontadas em duas partes. Talvez alguém pensou, "se em Roma a catedral de Pedro é assim, vamos dar à Terceira Roma uma catedral igual", afinal, lembremos que os tzares russos proclamaram a Rússia como a "continuadora do Império Romano", sucessora de Bizâncio. A catedral de Santo Isaque lembra o prédio principal da Basílica de São Pedro, a catedral de Nossa Senhora de Kazan lembra as alas que compõem a praça principal do Vaticano. Se parte da nobreza europeísta pensou nos tempos de Pedro e Yekaterina II, que fechou mais de 70% dos mosteiros russos, usando-os inclusive como prisão, em fazer da Rússia um país católico, para fazer esses nobres mais "sofisticados e superiores ao campesinato atrasado e ortodoxo", há até um termo para isso em inglês, muito usado nas redes sociais e jogos, "welfare", assim, construiu-se uma espécie de "catolicismo welfare", melhor dizendo, construiu-se uma espécie de "ocidente welfare" em São Petersburgo, uma tendência que chegou a ser duramente criticada com a sabedoria da literatura de Lyev Tolstoy, que em sua obra "Guerra e Paz" critica um personagem que passa a ter aulas de russo, pois conversava com a nobreza apenas em francês, já que o russo era a língua dos mujiques, da "ralé". Assim, parece que em certo grau desenvolveu-se em São Petersburgo essa ideia de que São Petersburgo é a "Europa culta, contra a ralé mal-educada e atrasada da Rússia", assim vemos em São Petersburgo artistas que imitam artistas europeus, que em suas guitarras caras e potentes tocam hits do Guns and Roses e de outras bandas ocidentais em frente a pontos turísticos como a Catedral do Sangue Derramado, e esses artistas se recusam a tocar hits russos, pois tem-se a impressão de que eles mesmos têm "vergonha de serem russos, mas orgulho de serem europeus".

Se há algo inquietante em São Petersburgo é a mentalidade de alguns russos no estilo "olha, eu sou europeu, tenho vergonha de ser russo, o ocidente é muito bonito e nós também somos ocidentais, somos cultos e a nossa cidade é tourist-friendly", essa mentalidade é traduzida em vários aspectos da vida cotidiana. Lembremos que São Petersburgo foi construída pelo trabalho escravo de prisioneiros de guerra suecos que concretizavam aquilo que desenhava o que engenheiros holandeses, italianos e alemães colocavam no papel, como nos sugerem vários historiadores russos e mesmo livros de teor turístico como "Imperatorskiy Peterburg" (Petersburgo imperial), o próprio nome da cidade sequer é russo, é apelativamente ocidental, no etnos russo não há "burgos", há "posad", há "gorod" (como em Novgorod), há "grad", há "kremlin", "lavra"... lembremos que em São Petersburgo não há um kremlin. Burgo é algo eminente ocidental, e durante a IGM o nome da cidade chegou a ser mudado (antes mesmo dos bolcheviques) para Petrogrado, os bolcheviques apenas surfaram nessa onda e renomearam para "Leningrado".

Enquanto cidade ligada ao ocidente, São Petersburgo foi a cidade russa que primeiro adotou o marxismo, ideário em voga entre a intelectualidade europeia no início do século XX, ironicamente há um número expressivo de cidadãos de São Petersburgo que inquietam-se com a ideia de "União Soviética" e nos dizem como o "comunismo foi ruim e a União Soviética é um atraso de vida", lembrando que nos últimos anos do poder soviético Leningrado foi uma das primeiras cidades soviética a ser "dessovietizada", retomando o nome "São Petersburgo".

Influi também o fato de que a cidade é um porto, assim muitas misérias que vemos em cidades portuárias do Brasil nós também vemos em São Petersburgo. Como dizia um professor meu de Areia Branca, cidade porto do estado do Rio Grande do Norte, "em cidade portuária tudo entra mais rápido". Na era soviética, em São Petersburgo entravam discos proibidos de bandas ocidentais, mesmo criou-se a expressão "rock de São Petersburgo", pois lá floresceram muitas bandas que viriam a fazer sucesso na URSS nos anos 80 e nos anos 90, de São Petersburgo também vêm os oligarcas que tomaram conta do país dos sovietes nos anos 90, cleptomaníacos profissionais que tornaram-se os novos boiardos da Rússia pós-soviética, os Sobchak, os irmãos Rotemberg, Timchenko, Nesis e outros. Lembremos que foi o prefeito Sobchak que arquitetou a mudança de nome de "Leningrado" para São Petersburgo", um brilhante matemático e também brilhante na arte de se apossar das riquezas construídas por meros mortais soviéticos. Sua filha, Ksenya Sobchak, é considerada a "Paris Hilton russa", verdade, menos vulgar, mais comportada, mas uma das cabeças do canal "Dojd", considerado o favorito dos liberais, em pleno Dia da Vitória o canal chegou a propor que talvez a Rússia teria ficado melhor nas mãos de Hitler do que enquanto "país dos sovietes", declaração estranha se considerarmos que São Petersburgo, ou melhor, Leningrado, detém o título de "Cidade Herói".

Os leitores que acompanham este blog podem comparar cidades-heróis visitadas pelo descobridor da Rússia como Moscou, onde se fala no "Parque da Vitória", em incríveis monumentos dedicados à vitória na IIGM, mesmo pequenas cidades como Tula, na qual no centro encontramos uma versão luminosa da estrela dourada de "Herói da União Soviética", mas o que encontramos em São Petersburgo referente a esse glorioso momento exaltado pelo poeta e escritor brasileiro Carlos Drumond de Andrade, isto é, a vitória sobre o fascismo? Um discreto "Parque da Vitória" e um obelisco em um ponto estratégico da cidade. Mas para ser justo, devemos lembrar que parece que essa tendência era corrente mesmo na época da União Soviética, isto é, de manter a cidade como um "cartão de visita para turistas ocidentais", afinal, "é feio falar de guerra", mesmo que ela represente uma realização, um "podvig" de todo um povo em sua luta para não se transformar numa colônia ou numa "república das bananas" como tantas na América Latina ou na África.


Mas ainda falando em "cidade-porto", o que há de tão ruim nisso? Vi em São Petersburgo algumas misérias que não percebi na cidade de Moscou (embora saiba que em Moscou e outras cidades interioranas elas também existam), por exemplo, oferecimentos de "show de strip" e rapazes que abertamente e sem qualquer máscara em língua inglesa, próximo da Avenida Nevsky, "as garotas ideais para homens como eu" (modéstia a parte, procuro andar sempre com boa apresentação individual), anúncios de strip tease, inclusive shows desse tipo para o ano novo... Em algumas ocasiões me choquei com situações um tanto estranhas, conheci garotas que "se decepcionaram comigo" ao perceber que tenho um ponto de vista pró-russo, que considero importante o seu papel na história mundial, seja na época de Alexander Nevsky, na época de alguns tzares e principalmente na era soviética e mesmo na Rússia atual. Quanto a isso, sei que no Brasil há algumas pessoas que se irritam se um estrangeiro vê coisas boas no Brasil, e nesse momento em São Petersburgo, me senti talvez como alguns estrangeiros que gostam do Brasil se sentem ao visitar o país sulamericano. Assim, se algum russo de São Petersburgo lê este blog, há que fazer um questionamento, será que ele ou ela já tentou se imaginar no lugar do turista? Se alguém acha que impressiona a um ocidental dizendo que "tem vergonha de ser russo e bom é o ocidente", a única coisa que esse ocidental irá imaginar do russo é que ele sofre de "complexo de vira-latas", e esse complexo de vira-latas é um problema muito sério que conhecemos no Brasil, isto é, pessoas que acreditam que tudo no país é ruim e o bom está apenas na América ou na Europa. Ele se torna provinciano ao pensar assim, no pior sentido que tem essa palavra.

A beleza da Rússia está exatamente nela ser Rússia, tenha ela os seus defeitos ou qualidades, a beleza do russo está exatamente na sua idiossincrasia, na sua camaradagem, no seu espírito de luta e orgulho do seu país e de suas tradições, e não em querer se parecer com aquilo que ele não é. O ocidente tem muitos defeitos, e hoje muitos ocidentais olham para a Rússia como uma alternativa a esses defeitos, o ocidental quer aprender com a Rússia, o brasileiro quer aprender com a Rússia! Como certa vez escreveu um poeta, "o mundo inteiro a chama, lá onde se quer viver livre"*!

*Вес мир собою позовёт туда где любят вольно дышать!

2 comentários:

  1. São Petersburgo é uma cidade muito confortável, planejada em cada detalhe! Sem o caos do trânsito de Moscou. São Petersburgo foi escolhida a melhor cidade da europa, que melhor recebe o turista de 2015.
    Agora se você não aguenta nem olhar para shows de "Danças sem roupas", que existe em toda a Rússia, principalmente em Moscou. Acho que você está perdido no tempo (sinto isso por suas palavras), a União soviética já caiu, ninguém vive mais daquela forma rapaz. Se atualiza!

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    1. Prezado leitor, moral não é "perca no tempo". Ninguém aqui tem problemas com roupas, se alguém vai a certos tipos de praia ou banho russo ou riacho é totalmente normal que as pessoas se apresentem do jeito que vieram ao mundo, só que a Rússia é um país ortodoxo, será que você não se atualizou quanto a isso? Para a ortodoxia a sedução é assassinato da alma, para saber disso você precisa participar de uma missa ortodoxa, o que vejo que parece não ser o seu caso, infelizmente. Isso vai muito além de União Soviética, Rússia ou seja qual país for.
      Em Moscou como em outras cidades da Rússia infelizmente há mulheres que precisam disso para ganhar a vida, mas sem dúvidas não é algo tão explícito quanto em SPb, onde isso é propagandeado até em postes e calçadas.
      Com relação a "receber melhor o turista", com todo respeito pela cidade, fui muito mais bem recebido no sul, em Volgogrado.

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