sábado, 12 de novembro de 2016

Outubro na cidade de 3 revoluções






Agora um pouco de história para os nossos leitores...

São Petersburgo também é conhecida como "A cidade de 3 revoluções". Para alguns isso é muito bom, para outros isso é muito ruim. E por quê?

Ainda durante a Glasnost e a Perestroyka, a URSS conheceu um período de revisão da história. Maria Vladislavovna tem mais 60 anos e comentava, em um encontro do qual participei com um escritor, sobre como a história russa vem sendo reescrita, "antes aprendíamos que revolução era uma coisa boa, hoje aprendemos que revolução é uma coisa ruim", dizia a senhora. Muitos avós e pais na Rússia comentam que seus filhos aprendem uma história completamente diferente daquela que eles aprenderam na escola, é um processo estranho aos brasileiros, exceto talvez para aqueles que estudaram nos anos 60 e 70, quando aprendiam sobre a figura heroica do Duque de Caxias e do Marechal Deodoro, sendo que estes ainda são figuras exaltadas no seio das forças armadas brasileiras, por exemplo, ademais a ausência de um debate histórico e de materiais sobre essas figuras, bem como sobre a Guerra do Paraguai, tornam o debate ainda mais difícil, basicamente limitado a "isso é coisa da esquerda" ou "isso é coisa da direita".

A imagem da Revolução de Outubro na Rússia, entretanto, é cercada de mitos e fatos concretos, ela encontra no meio intelectual um número expressivo de historiadores e politólogos de peso, que defendem o seu papel, mas também aqueles que condenam o seu papel. E ao contrário do que ocorre com certos tabus no Brasil, limitados a "esquerda x direita", na Rússia ambos os grupos são bastante heterogêneos, por exemplo, há alguns nomes de direita, liberais, que defendem a Grande Revolução Socialista de Outubro, ao passo que há alguns nomes de esquerda pró-URSS, evidentemente não comunista, que diz que a Revolução foi "uma tragédia", "irmão contra irmão", ou uma "armação do imperialismo britânico". A parte credos políticos, há que separar o joio do trigo, e dissociar o que é verdade do que é mito sobre a Grande Revolução Socialista de Outubro.

Uma das críticas mais comuns feitos ao ensino de história na URSS é a de que nos manuais de história a história do país começava a partir da Revolução de Outubro, ignorando outros períodos. De fato, a julgar pela experiência do autor deste site, existe um "Manual de história da URSS: período do socialismo 1917-1957", manual raríssimo publicado em português de autoria da Academia de ciências da URSS. Por razões diversas, incluindo o objetivo soviético de superar as diferenças nacionais da URSS através do "homo sovieticus", não há o que lamentar no projeto soviético. Hoje a Rússia discute um projeto de lei que visa definir o que é o russo, assunto controverso na Rússia, seria o tártaro um russo? Seria um judeu um russo? Um buriate é russo? Um alemão do Volga é russo? Essa é uma questão intrigante, lembrando que na língua há três palavras para "russo", o topônimo russkiy (a única nacionalidade, ao lado de sovietskiy, terminada com "skiy") e o topônimo rossiyanin, isto é, "da Rússia", mas não necessariamente o russo étnico. Uns insistem que ser russo é ser "da Rússia e ortodoxo", outros evocam teorias diversas, e alguns até insistem que "russo é ser branco, eslavo, de cabelos e olhos claros". Putin entende a sensibilidade da questão e busca um projeto inclusivo, alguns autores, formadores de opinião, defendem que a Rússia deveria fazer o mesmo que os EUA, Brasil ou a URSS fez, isto é, se nos EUA qualquer um é "americano", seja índio ou anglossaxão, se no Brasil qualquer um é "brasileiro", seja italiano étnico ou negro, se na URSS qualquer um era "soviético", o escritor Nikolay Starikov defende que cada um deve ser "russkiy", e se alguém quer elucidar o seu povo, então que o passaporte contenha uma listra para a nação deste, por exemplo, "russkiy", e logo abaixo, "iacute". Esse debate foi superado durante a era soviética, que, a propósito, adotava esse sistema sugerido por Starikov, lembrando que o próprio Starikov vê a revolução russa (e qualquer revolução) como uma tragédia, a despeito de suas posições pró-soviéticas.


Um mito bastante difundido, frequentemente por grupos nacionalistas e monarquistas é a noção de que "a Revolução Russa destruiu o Império Russo", ou que "Lenin esfacelou a Rússia". Como em qualquer país de grande extensão territorial com um histórico de conquista de territórios, o governante que adiciona territórios tende a ser exaltado, o que perde tende a ser execrado. O mesmo se dá com a Rússia, por isso alguns tendem a gostar de Stalin (que recuperou vários territórios do Império Russo), mas não de Lenin (cujo governo perdeu o oeste da Ucrânia e Bielorrússia para a Alemanha). Ainda, no meio monarquista, existe a noção de que "Lenin derrubou o tzar", ou "Lenin acabou com a monarquia". Esses são dois mitos extremamente populares e completamente falsos, mitos estes criados pelos monarquistas mais reacionários e também por alguns "ultracomunistas" que visam enaltecer o papel de Lenin. Em realidade, o tzarismo, o tzar russo, que em realidade era um aristocrata a serviço das elites financeiras da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, não foi derrubado pelos comunistas, mas pelos liberais, pela Revolução de Fevereiro! Quando os bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno (Hermitage), estes não prenderam o tzar Nikolay II, eles prenderam na "sala dos continentes" o governo provisório de Kerenskiy! Aqueles que visitam o Hermitage podem se deparar numa sala com tapetes que representam os 5 continentes com uma plaqueta histórica na qual está escrito "Aqui, na noite de 25 de outubro de 1917 os bolcheviques, tomando de assalto o Palácio de Inverno, prenderam os membros do governo provisório nesta sala". Digamos que é a "sala mais comunista" do Hermitage, verdadeiro deleite para os fãs da URSS e da Revolução de Outubro. Logo, aqui derrubamos mais um mito, isto é, a monarquia, o tzarismo, o esfacelamento do Império, não foi "obra dos bolcheviques", foi obra dos liberais e dos homens de Kerenskiy, de aristocratas descontentes com a fraqueza do tzar Nikolay II, considerado tanto pelos seus apoiadores quanto pelos seus críticos como um tzar fraco, um tzar pusilânime e despreparado para assumir a direção de um grande Estado. Em realidade, Lenin, longe de desmantelar a Rússia, foi fundamental para manter a sua integridade, e segundo alguns autores como Nikolay Starikov, foi exatamente por isso que ele foi assassinado. Lenin, diz Starikov, jamais foi espião de qualquer Estado, jamais recebeu dinheiro e até hoje jamais foi encontrada qualquer grande soma de dinheiro em suas contas no exterior (exceto uma pequena soma na Suíça, fruto de uma poupança feita no começo do século XX, quando Lenin esteve em Zurique, que por mais de 100 anos rendeu), 

todavia os alemães permitiram a volta de Lenin em um trem blindado e para Starikov os britânicos tinham grande esperança no governo de Lenin, para que este acabasse com a Marinha Russa, o que não ocorreu, e essa teria sido a razão do atentado contra a sua vida. Lembremos que todos os impérios europeus se esfacelaram após a IGM, exceto o britânico (vencedor), e o russo (derrotado), que emergiu como "União Soviética" em 1922.

Assim como o mito da "destruição da Rússia", outro mito sobre a Revolução de Outubro é o de que ela significou "irmão contra irmão", só que a Guerra Civil Russa se deu um ano após a Revolução de Outubro, e contou com o apoio de ao menos 14 países estrangeiros para esmagar o governo vermelho de Lenin, em conjunto com o Exército Branco de Denikin, Kolchak e Wrangel, o "Barão Negro". E a propósito, irmão contra irmão? Os clássicos da literatura russa nos contam sobre a "irmandade" que era o Império Russo, um império no qual aristocratas improdutivos e parasitas viviam no  absoluto luxo dos palácios de São Petersburgo, hoje todos disponíveis à visitação popular, pura ostentação, e os operários e camponeses viviam na mais absoluta miséria, não sabiam nem ler nem escrever e passavam fome sempre que havia crise na colheita não do trigo, mas de uma erva-daninha que misturada ao trigo aumentava a quantia de pão, com baixo valor nutricional. Era uma Rússia do arcaísmo, do atraso, e os camponeses eram compelidos a levar adiante esse modelo, vivendo de forma análoga aos tempos medievais.

Outro mito relacionado à Revolução de Outubro, este contemporâneo, é a sua analogia para com os processos políticos ocorridos na Ucrânia, Geórgia e até no Brasil. O autor deste mito são os cardeais das elites financeiras da Rússia, da chamada "burguesia compradora" que carece de compromisso político com a modernização do país, com o investimento em ciência e tecnologia, e essa elite transforma grandes fábricas construídas na URSS em centros de comércio cheios de importados e em estádios de futebol. Cada vez mais, na Rússia, pessoas deixam sua cidade-natal nos Urais e outras regiões para ganhar o pão em Moscou e São Petersburgo, o exército de operários é trocado pelo exército de vendedores de lojas, eufemisticamente chamados de "gerentes de venda". Assim, pela sua política econômica equivocada, criticada pelo presidente Putin e seus apoiadores e críticos, os oligarcas temem uma revolução, fazendo de tudo para que o termo "revolução" ganhe uma conotação negativa, ignorando a diferença fundamental entre "revolução" (outubro, ou fevereiro de 1917) e "golpe de Estado" (Ucrânia em 2004 e 2013).

O significado da Revolução de Outubro não pode ser esquecido, a saúde e educação para todos, vitória sobre o racismo, vitória na ciência e tecnologia com o envio do primeiro satélite artificial e primeiro homem ao espaço, elevação do papel internacional da URSS e da Rússia, que hoje no mundo exerce um papel de grande relevância na exploração do espaço, em conjunto com outras potência, e constitui contrapeso às políticas agressivas e destrutivas da Casa Branca americana. O legado positivo do Cruzador Aurora, na noite de 7 de novembro em São Petersburgo sobreviverá pelos séculos.



Foi por essa razão que no dia 7 de novembro (25 de outubro pelo calendário velho) milhares de pessoas saíram às ruas em São Petersburgo, comemorando o jubileu de 99 anos da Revolução de Outubro. Dentre os participantes de outros países estiveram comunistas da China, Finlândia e Brasil.

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