segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Um herói negro da Rússia

Como um negro se tornou "o mais incomum herói russo da primeira guerra" e auxiliar do inventor do helicóptero
Marcele Pliat com um sorriso típico dos russos, ostentando duas Ordens de São Jorge, maior condecoração do Império Russo
Comemorou-se há alguns dias atrás no Brasil o Dia da Consciência Negra, e mesmo estando na Rússia, o "Descobridor da Rússia" não podia deixar passar em branco a data. 

No aniversário do jubileu do término da Primeira Guerra Mundial a famosa revista russa "Ogonyok" publicou uma matéria sensacional, sobre um "herói russo", como dizia a manchete, bastante diferente. Na foto, como ele posava com o sorriso típico de um russo, usava um uniforme do Exército Imperial Russo e ostentava duas pomposas Cruzes de São Jorge, então a maior condecoração militar da Rússia. 
Reprodução da medalha de São George com as suas cores típicas
Em janeiro de 1915, o famoso engenheiro aeronáutico russo Igor Sikorskiy, inventor do helicóptero, partiu numa busca para encontrar militares suficientemente instruídos e letrados para operar a sua nova criação, um enorme avião cujo objetivo, ao contrário dos aviões da época, consistia em lançar sobre o inimigo pesadas bombas de grandes altitudes, tratava-se de um bombardeiro, e o nome evocava o nome de um herói dos contos de fada russo, "Iliya Muromyets". Na época era muito raro encontrar homens instruídos na Rússia, na época formada em sua maioria por analfabetos, tragédia descrita por Dostoyevskiy ainda em "Recordações da casa dos mortos". No exército, geralmente só os oficiais, em regra nobres, sabiam ler e escrever. 

Ao convocar diferentes soldados, chamou a atenção de Sikorskiy um que se destacava entre os demais pela cor de sua pele, negra. Ao fazer perguntas ao militar, o negro respondeu a todas em russo, e o que mais impressionava, era dotado da fala e do tom típico de São Petersburgo (na época, a capital), falava como um operário petersburguense, sua esposa era russa. Marcele foi escolhido como um dos tripulantes da poderosa máquina voadora.

Marcele não era africano, sua mãe era da Polinésia Francesa, empregada de um patrão abastado na França, que a permitiu ir ao país europeu com o seu filho. No ano de 1907 os dois foram à Rússia, onde Marcele passaria a estudar e viver. Adulto, Marcele tornou-se operário, vestia-se como um operário russo da época, distinguindo-se apenas pela cor da pele. Marcele, a propósito, não era o único negro no regime do tzar, muitos eram de origem africana, funcionários do Palácio de Inverno, sede cerimonial do governo russo, usavam roupas requintadas inclusive, de causar inveja aos seus colegas do continente americano, geralmente moravam em palácios e tinham uma "sensala" de causar inveja até aos mais bem sucedidos brancos ocidentais e aos próprios servos brancos da própria Rússia.

Retrato de um negro no Hermitage, do qual muitos eram funcionários no século XIX. São Petersburgo é hoje uma das cidades russas com o maior número de afrorrussos. Os descendentes de um desses "negros da corte", se tornariam conhecidos depois, um por ser um fuzileiro naval da Marinha Vermelha, e outra por receber o título e a medalha de "Sobrevivente do Cerco de Leningrado", durante a IIGM.
Quando a Primeira Guerra Mundial estourou em 1914, Marcele foi convocado a servir no Exército Francês, mas Marcele recusou-se a servir nas forças de um país com o qual não tinha mais nenhuma ligação, e assim alistou-se nas forças do país que considerava como a sua nova pátria, a Rússia.

No começo, devido à sua educação, Marcele foi instruído como chofer, mas quando surgiu a Força Aérea, ele transferido para lá. Pliat foi alistado como técnico de motor e soldado-metralhador do bombardeiro "Ilya Muromets". O técnico de motor tinha como obrigação conhecer os princípios de funcionamento do motor, as medidas de segurança e ser apto para efetuar reparos no motor, fosse no solo ou em pleno voo, em caso de avaria. Como metralhador, Pliat tinha como missão defender o bombardeiro de outras aeronaves cuja função primordial é atacar outras aeronaves, os "caças".

Representação gráfica do primeiro bombardeiro estratégico da história, o "Ilya Muromets"
Em 13 de abril de 1916, Plia e seus companheiros foram incumbidos da missão de atacar a estação de Daudzevas, dos alemães. Eles faziam parte da tripulação do piloto Avenir Kostentchik, piloto da aeronave.


Marcele Pliat com seus companheiros da Força Aérea Russa, no que parece ser um hospital militar da IGM
Retrato de um Ilya Muromets modelo D, de quatro motores. As melhoras no avião feitas por Sikorsky, inventor do helicóptero, contaram com a assistência do mecânico-metralhador Pliat.

A estação de Daudzevas possuía forte guarnição, não dando a menor chance para os aviões russos. O "Muromets" foi atingido, o piloto foi ferido, o motor sofreu danos e as asas seriamente danificadas, o que poderia levar à queda da aeronave. Pliat, então, foi até a asa do avião, efetuando reparos em voo, o que permitiu que a aeronave retornasse à base. No solo, os mecânicos contaram 70 perfurações. A tripulação foi condecorada e Marcele foi condecorado com a Cruz de São Jorge pelo seu ato heróico.

Ilya Muromets aterriçado cheio de avarias. Foi a coragem do polinésio Pliat que impediu a queda do avião
Marcele também possuía uma grande pontaria, como metralhador, no outono de 1916, o "Muromets" tinha um novo piloto, o primeiro-tenente Lavrov, que escolheu o russo negro como membro de sua tripulação. A escolha de Lavrov mostrou-se certa, Plia agora operava a metralhadora da cauda do avião. O "Muromets" foi atacado em voo por 3 caças alemães, que o tinham por uma presa fácil, todavia, uma vez caindo no setor de tiro da metralhadora de Marcele, o primeiro foi abatido, o mesmo ocorreria ao segundo, o terceiro decidiu não ter o mesmo destino dos outros dois e retornou à base. Pelo seu feito, a tripulação do "Muromets" foi condecorada mais uma vez, e Marcele recebeu a segunda Cruz de São Jorge.

Plia era respeitado não somente pelos seus inimigos, como também pelos seus chefes, ele ajudou o próprio Igor Sikorskiy a fazer vários ajustes e melhoras em seu avião que depois provaram ser de grande utilidade.

Em novembro de 1916, Marcele já era suboficial sênior, possuindo duas Cruzes de São Jorge, entretanto, aí desapareceriam as suas pegadas. Assim como ocorreu a vários aviadores soviéticos da IIGM, numa guerra de enormes proporções como a IGM, o paradeiro de Pliat foi desconhecido, em especial depois que um fato marcante mudaria completamente o curso da I Guerra Mundial na Rússia e toda a história das forças armadas russas, a Revolução! Em fevereiro de 1917, os liberais derrubaram o tzar Nikolay II, pondo fim à monarquia na Rússia e substituindo-o por um ditador impopular, Alexander Kerenskiy, que optaria por manter a Rússia na Tríplice Entente, contra os desejos do povo e especialmente dos soldados russos da frente de batalha. Mais tarde, o próprio Kerenskiy seria derrubado pela Revolução de Outubro, que firmou a paz com a Alemanha e dissolveu as forças militares do tzar, substituindo-as pela Guarda Vermelha, depois Exército Vermelho, a serviço da Rússia Soviética de Lenin, que também contaria com negros e homens de diversas nacionalidades em suas fileiras.

Marcele Pliat integrou-se à sociedade russa e como membro desta defendeu o país que agora tinha por seu contra o agressor alemão. Era uma guerra sem sentido, na qual a Rússia foi usada pela Inglaterra, mas milhões de camponeses e operários russos lutavam por aquilo que lhes diziam ser correto.

O escritor Lyev Tolstoy, considerado o maior da Rússia, escrevera certa vez, que "o que define um russo não é a cor dos olhos, do cabelo ou da pele, mas sim a sua incapacidade de dormir inquieto com a injustiça". O tzar Pedro, o Grande, possui uma famosa citação segundo a qual "um russo é aquele que ama a Rússia e serve a ela". Com base nesta linha, o renomado jornal russo "Argumenty i fakty" referiu-se a Pliat como "o mais incomum herói russo da Primeira Guerra Mundial".


Fonte: Artigo "Negr s "Muromtsa". Istoriya samogo neobychnogo russkovo geroya Pervoy mirvoy". Extraído da revista russa "Argumenty i fakty" em: http://www.aif.ru/society/history/1463965

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