terça-feira, 15 de março de 2016

Stalingrado: a minha visita a Volgogrado

Retrato da frente de Tsaritsyno, trazendo os comandantes da Cavalaria Vermelha. Ao lado direito percebemos, de quepe, um jovem comissário comissário bolchevique que daria nome à cidade, Iósif Stalin. Retrato do Museu das Forças Armadas, em Moscou.

O sul da Rússia é conhecido pelas terras negras conhecidas como tchernozyon e pelas pessoas mais calorosas, sob um clima mais quente, bem como pelo galardão das cidades heróicas, dentre as quais a lendária Stalingrado, conhecida nos quatro cantos do mundo pela forma como suportou a maior carnificina na história de todas as batalhas da humanidade, a Batalha de Stalingrado. Há alguns nomes que indissociáveis da história das guerras enquanto palcos de batalha, Vietnã, Iraque, Alemanha, Rússia... se falamos de cidades, temos que lembrar de Saigon, Bagdad, Berlim, Hastings e Stalingrado.

O descobridor da Rússia visita o colossal monumento "A Pátria-Mãe chama" (Rodina-mat zavyot)


Stalingrado é uma cidade às margens do Volga, a "Mãe dos rios", segundo uma famosa canção russa, estendendo-se por mais de de 100 quilômetros em torno desse rio, dando a impressão de que todos quiseram morar perto dele. A história da cidade nos leva à capital da antiga Horda de Ouro, que tinha por sua capital Nova Saray, praticamente no local onde fica Volgogrado. Ali, os descendentes de Gengis Khan governaram como senhores de boa parte do mundo, do grande Império Mongol. Ali, segundo consta a lenda, em uma grande colina, sentava-se o khan mongol Mamay, numa colina erguida especialmente para ele, onde acredita-se que ele foi enterrado, dando à colina o nome de Mamayev Kurgan. Mais tarde, com a conquista do Império Mongol pelo Império Russo, e a assimilação de várias práticas da Horda, a tzaritsa Yekaterina II fundou a povoação de Tsaritsyno, que passou a ser a sua residência de verão, devido ao clima ameno da região. Com o passar do tempo, o Império Russo também acabou, sendo seguido por duas revoluções, em fevereiro e outubro, tendo a última triunfado e garantido a fama de vários de seus líderes, dentre os quais um georgiano que seria apontado como o comissário da defesa de Tsaritsyn contra o poderoso e infame Exército Branco, exército composto pelo que havia de mais reacionário, atrasado, detestável e odioso na nobreza russa, surgia assim, em razão do papel do comissário Iosif Stalin, a cidade sob o nome de Stalingrado.

Além da sua fenomenal história, o ponto marcante de Volgogrado foi a calorosidade dos habitantes locais, sem dúvidas a melhor das cidades russas que visitei, tendo em curtíssimo período de tempo feito amizade com pessoas que até então eram inteiramente desconhecidas. Os habitantes do sul da Rússia são frequentemente descritos, mesmo em Moscou, como famosos por sua calorosidade.
Stalingrado foi durante a época soviética uma cidade industrial, espalhada pelas margens do rio Volga, com enormes fábricas e empreendimentos produtivos. Com a eclosão da IIGM e da Grande Guerra Patriótica, o tirano austríaco Adolf Hitler, visando alcançar os poços de petróleo do Cáucaso, escolheu a cidade de Stalingrado para que esta se tornasse o símbolo da vitória dos nazistas sobre o Exército Vermelho, derrotar Stalin, o premier do Estado soviético, na cidade que levava o seu nome, o que seria uma enorme desmoralização.

Uniforme fascista e uma submetralhadora MP-40. Os uniformes nazistas eram frequentemente considerados inapropriados para o clima soviético, incluindo as suas variantes de inverno. Ressalte-se a inexistência, nas forças alemãs da época, de um gorro invernal quente como a ushanka.
A cidade, como atestam vários documentos históricos e a avó de um anfitrião meu, foi implacavelmente bombardeada, cerca de 90% dos edifícios de Stalingrado foram inteiramente transformados em escombros! A aviação nazista não perdoou um único dia, despejando sobre a cidade bombas explosivas e incendiárias, como as que os Estados Unidos despejaram sobre o Vietnã (por que é que nenhum tagarela resolve comparar os EUA à Alemanha nazista?). A cidade ardeu em chamas por dias e noites até a chegada das tropas alemãs, que encontraram forte resistência do Exército Vermelho. Unidades de elite foram enviadas à cidade, incluindo fuzileiros navais convertidos em infantaria regular, dentre os quais o sniper Vassiliy Zaytsev, paraquedistas da VDV, além de tanques, artilharia e os melhores pilotos da Força Aérea, dentre os quais a ás Lidiya Litvyak, mais tarde conhecida como "A Rosa branca de Stalingrado". Isso, a propósito, contradiz o mar de mentiras que há sobre essa cidade divulgado por filmes americanos, incluindo a noção de que "só havia um fuzil para cada 2 soldados" ou que "todos atiravam-se como escudos de carne contra metralhadoras sob o medo dos batalhões punitivos do NKVD". Em realidade, esses batalhões punitivos existiram, mas eram unidades especiais que se ocupavam com a limpeza de campos minados e outras tarefas difíceis, nada tendo a ver com "ou a bala dos nazistas ou a dos comunistas".

Um dos episódios mais marcantes foi o da casa do sargento Pavlov, quando após um ferimento em um tenente, um sargento assumiu a liderança de uma companhia, resistindo por mais de 90 dias aos ataques dos nazistas, por todos os lados. Em algumas ocasiões, como descreveu o sargento em seu diário, os seus comunistas foram salvos pelos próprios nazistas, que dizimaram os próprios aliados com fogo "amigo". A "Casa do Sargento Pavlov" tornou-se um símbolo de resistência da cidade, que atendia ao lema de "Nenhum passo atrás".  Inúmeros exemplos de heroísmo foram dados em Stalingrado, todos devidamento retratados no Panorama de Stalingrado, como um militar comunista que, após tentar lançar coquetéis Molotov sobre um tanque nazista, foi atingido e resolveu incinerar o próprio corpo, transformando-se numa chama viva, e então lançando-se sobre um tanque nazista, impedindo-o de avançar, ou um militar da arma de comunicações que para tentar efetivar uma ligação indispensável aos seus camaradas, rastejou até os cabos partidos e unificou-os com a sua boca, mesmo sabendo que isso lhe custaria a própria vida de uma forma completamente penuriosa. A garota que me descreveu esse episódio, no alto do panorama de Stalingrado, não escondeu a sua emoção ao descrever esse feito heroico. 

Ao chegar em Stalingrado encontramos uma versão restaurada da famosa fonte das crianças, símbolo da guerra que pode ser visto em vários filmes, inclusive ocidentais, sobre a batalha. A fonte original está localizada ao lado do Panorama de Stalingrado.

Não muito longe do Panorama, às margens do rio Volga, vemos mais um local coberto pela glória e pelo heroísmo do Exército Vermelho, o monte conhecido como "Kurgan de Mamay", o cã mongol. Nenhum grão de areia daquele monte deixou de ser coberto pelo sangue de dezenas de milhares de soldados do Exército Vermelho. Devido à sua localização estratégica, comunistas e nazistas disputaram frequentemente o seu controle, que além de uma vista para toda a cidade, também permitia bombardear o inimigo com artilharia e morteiros. Sob baixas muito pesadas, o Exército Vermelho conseguiu recuperar a cota, na qual por meses não nasceu um único fio de grama. Em sua escadaria vemos a inscrição "Pela nossa PÁTRIA SOVIÉTICA", não pela Rússia, Bielorrússia, Ucrânia ou Uzbequistão, mas pela "pátria soviética".

Resquícios da Casa do Sargento Pavlov, com os tijolos originais vermelhos
Pelo centro da cidade nos deparamos com diferentes edifícios, lanchonetes, universidades em grande quantidade, onde estudam pessoas de diferentes lugares do mundo, bibliotecas, museus, além do imponente prédio do Planetário, parecido com uma versão em miniatura do Reichstag, presente do povo da Alemanha Oriental, um país de nazistas transformado em um país de socialistas, após a sua libertação pelo Exército Vermelho. Foi em Stalingrado que o Marechal Von Paulus, comandante alemão, entregou-se ao Exército Vermelho, após se esconder em um porão. Foi um feito inédito na história, onde um marechal alemão entregou-se ao inimigo. Milhares de alemães e combatentes de outras nacionalidades, dentre milhares de italianos, húngaros, austríacos e outros, foram feitos prisioneiros pelos combatentes de Stalingrado, que pelo seu feito chegaram a ser agraciados com uma espada entregue por Churchill, presente do Rei da Inglaterra George VI. Posteriormente, muitos governos presentearam o povo da cidade-herói Volgogrado como o do Japão, com o sino de Hiroshima (foto), e o de Luxemburgo, com um tabuleiro de xadrez (foto).



Presentes do Japão, rei George IV (Inglaterra) e Luxemburgo ao povo de Stalingrado. Será que algum liberal ainda ousará comparar os defensores de Stalingrado aos nazistas?!
Um ponto que chama atenção na moderna Volgogrado, é que após a guerra a própria coloração da cidade mudou. Stalingrado possuía muitos prédios históricos, devido à sua condição de cidade centenária, algumas em estilo alemão, dada a colonização alemã dos arredores da cidade e aos caprichos da tzaritsa Catarina II, ela alemã. e outros prédios de coloração avermelhada. Eles foram arrasados pelas bombas, granadas, projéteis e incêndios, levando o governo soviético a reconstruir a cidade com material mais barato, cinza, que hoje predomina na paisagem urbana. Foram poucos os prédios antigos que restaram em Volgogrado, e somente uma árvore não foi devastada pela guerra.


Tanque T-34-76, situado em torno do Panorama de Stalingrado. Atrás corre o grande rio Volga, já mostrado em nossa matéria sobre Kazan inteiramente congelado.
Graças a grandes amigos e amigas de Volgogrado pude conhecer o tesouro histórico da cidade, como o prédio na foto, resquícios de um moinho, patrimônio cultural cuja posse foi disputada inclusive no combate corpo-a-corpo nos anos da guerra, em torno do Panorama
Impressionou-me positivamente na cidade, e sem dúvidas esse é o seu ponto mais forte, a alegria e a receptividade dos habitantes locais, recepção essa protagonizada por Denis e por Marina, ambos falantes de português que me apresentaram o seu círculo de alunos e os seus amigos, com os quais tive a honra de comemorar e ser parabenizado no dia 23 de fevereiro, tido como o Dia da Defesa da Pátria (antes Dia do Exército Vermelho), que está para os homens como o 8 de março está para as mulheres. Será que os homens no ocidente, os pais que dia e noite labutam, os jovens que protegem o seu país nas forças armadas também não são dignos de ter um dia seu? Nessa data, após o meu discurso e uma música sobre a Rússia, cheguei a ser convidado para aparecer na TV durante o Dia da Vitória, 9 de maio, a mais importante data da Rússia.

Vista do rio Volga, a partir da Mamayev Kurgan.
Stalingrado, em razão do congresso infame dirigido por Nikita Khuruschov foi rebatizada como Volgogrado nos anos 60. O ditador invejava os feitos de Stalin e para encobrir seus próprios crimes durante a coletivização e os erros de sua equipe organizara um congresso em 1956, o XX Congresso do PCUS, onde denunciava supostos "crimes de Stalin", desmascarados no trabalho histórico do historiador, pesquisador, linguista e professor americano Grover Furr, "Hruschev Lied", atualmente em processo de tradução pelo autor deste blog. Para isso Khruschov não apenas tentava apagar Stalin da história soviética, mudando o nome da cidade, mas inclusive retirando o monumento a este no canal Volga-Don, uma maravilha da engenharia moderna, que pode ser vista em Volgogrado. Na cidade existe um movimento para renomeá-la como "Stalingrado". Alguns habitantes da cidade, como o meu anfitrião Denis, que mora em uma grande e espaçosa "stalinka", o famoso apartamento da era Stalin, defende que deveria haver um plebiscito nacional sobre a mudança de nome da cidade. O principal empecilho é a burocracia e outras questões relacionadas por causa da mudança de um nome.

Independente da opinião que cada um tenha sobre Stalin, devemos lembrar que em Paris há uma "Estação de Metrô Stalingrado", e não "Estação Volgogrado". Nos livros de história há a Batalha de Stalingrado, e não a "Batalha de Volgogrado". Ao contrário dos franceses, os russos infelizmente têm, não raramente, crises de identidade. Líderes que tiveram grande importância na construção do país como Ivan, Pedro, Catarina II ou Stalin são chamados de "tiranos" enquanto patifes que afundaram o país na corrupção, no atraso e na ineficiência como Yeltsin recebem até institutos com seu nome. E essa herança desses tempos persiste na Rússia de hoje. Ao mesmo tempo que a estação de trem nos lembra das mazelas da guerra, com a fonte das crianças e do jacaré, outros fatores na cidade nos fazem pensar que a cidade está em guerra com as suas ruas esburacadas, paredes sujas, prédios velhos e mal conservados, nos dando a impressão de que a cidade foi esquecida, a despeito do seu título de "Cidade-Herói". É certo que para os padrões brasileiros a cidade está limpa, mas para os padrões europeus, há muito o que ser feito. Alguns esperam a visita do presidente V. V. Putin, acreditando que depois disso tudo irá mudar, outros protestam, outros apenas ignoram, "a Rússia fora de Moscou e São Petersburgo é assim", dizem, (a despeito do exemplo de cidade como Rostov).

Volgogrado é uma das sedes da Copa 2018, e o que será desta cidade que decidiu se a humanidade caminharia pelo caminho da civilização ou da barbárie, como escreveu o poeta Drummond, isso o tempo dirá!

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